quinta-feira, 9 de maio de 2013

Fome ou Pátria: a resposta do canibalismo em tempos modernos

Uma planície sem contornos, estendendo-se sem fronteiras até onde morrem todos os olhares. Nenhum caminho, nenhuma direção. Sob os pés, um solo sempre igual, terroso e remexido, calcado mil e uma vezes infinito, por tantos pés e cascos de diversas bestas e seus cavaleiros, no alto montados, derramando-se desde o início do mundo, sobre o dorso cansado de seus escravos. Nenhuma orientação, o olhar é sempre para baixo, pois aqui morreu a fé e só há pessoas rasteiras e bestas quadrúpedes de corcundas milenares, sempre espezinhadas - o céu é para o loucos e sonhadores e assim não se vêem as estrelas. Há vermelho e verde do chão, sempre igual. Há cheiros pestilentos de fomes e de sedes nunca saciadas, há o odor nauseabundo, disfarçado de perfume, da corrupção, da indignidade, da desonra. Até o suor dos escravos é doce fragrância comparada com esta podridão de coisas.
Os mesmos de sempre comem os outros de sempre. Há parasitismo sectário, há sanguessugas pretas alimentando-se do sangue dos incautos ou dos inocentes. Há canibais e comensais, neste banquete de pobreza e de incompetência, há apetite para todas as coisas. Aqui, nesta planície que é Portugal ou qualquer outra terra moribunda, os olhos estão cegos e os ouvidos estão surdos: só há bocas escancaradas, varredores de necessidade, sorvedores de esperança e de vontade. 
Não tardará a reinar a desolação e a planície será deserto ou inferno.
Ao longe uma criança nua. Um arauto da desgraça ou um estafeta de esperança. Uma nau que se olha com saudade, nesta planície de marinheiros em terra e de mulheres que esperam de pés descalços. Vejo-a ao longe e, breve e sorrateiramente, as bestas de carga estendem o seu olhar cansado, e um brilho derradeiro se estende em ondas... Um desejo, uma vontade. 
Que esta criança cresça portuguesa. Que esta nau retorne e transforme este cais de origem. Que as mulheres não morram viúvas. Que as crianças não fiquem órfãs. Que as jovens não envelheçam virgens extenuadas numa maternidade adiada. Que as mãos dos homens não estejam vazias, com bolsos sem fundos de dignidade, com olheiras até ao peito, que esmorecendo se contrai, mais por hábito do que por entusiasmo. 
Que tudo isto não seja planície. Antes vale, ou montanha, ou mar encrespado. Antes vida do que morte.


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