Ainda há pouco tudo me faltava. E tinha risos e choros, tempos infinitos, livros arrumados, páginas por decifrar. E tinha dias de sol e de chuva que caía devagarinho, como uma carícia. E tinha árvores que docemente se balançavam ao vento. E tinha um irmão e uma irmã, e um pai e uma mãe, e mãos e pernas e alpendres para descansar ao entardecer, quando o fôlego do dia se me escapava por entre os lábios. E tudo era abundante no meu regaço e, ainda assim, o meu colo permanecia estéril e o meu coração pesava a cada batida. Afinal, ainda tudo me faltava.
Agora, já não tenho tempo porque ele se escapa por entre os dedos entrelaçados, como areia movediça. Já não tenho livros arrumados; estão dispersos no fio do pensamento, em que devoro, voraz, recordações de palavras, para as reproduzir com doçura, para me recordar que também eu estou a viver um romance outrora lido. Agora, já não sei se são dias de sol, ou de chuva, porque todos os dias são de bruma fora da janela, dentro do quarto só há o branco dos lençóis e das paredes caiadas, deste sítio de suspiros. Agora, já não há irmão ou irmã, nem pai nem mãe, há uma cândida existência, omnipresente, instalando-se com parcimónia em todos os recantos, reclamando como conquistador os despojos de uma vida antes vazia, para agora a insuflar com entusiasmo. Afinal, já nada me falta e falta tudo: falta onde antes eram coisas e agora são tesouros. Assim, nada me falta, perdi o que não tinha, para conquistar o que anseio ter.