Posso fazer as malas, uma e outra vez. Fazê-las e desfazê-las com violência, com ecos de tempestade, ou com doçura, lentamente tombando as roupagens dos vícios e com amor despedir-me, dobrando, como pergaminho, as meias, as camisas, os vestidos de sol e de areia. Faço e desfaço estes volumes de adeus, rasgos de passagem por entre as medas do tempo e do espaço, e penso que é breve o movimento e longo esquecimento. Esta deriva de partida, subtrai-me à paz de não sair desta casa, de me quedar imóvel numa vida em suspenso, pelo fio esticado por entre as montanhas. Da minha vida crio compartimentos, estabeleço fronteiras invisíveis, desfaço uma narrativa de viagem. A mala está devidamente arrumada, num movimento artificial de ordem e precisão. Falso, como é falsa a organização que criamos para a nossa vida, a história que contamos a nós mesmo sobre o desenrolar dos acontecimentos, como nos perdemos e ludibriamos na memória que, insidiosamente, vai desfiando corredores inexistentes, saídas de emergência e janelas altas para o mar. A mala está pronta e este ímpeto de perfeito acabamento, de arestas limpas e arejadas, propulsiona a minha mão sobre a aba. Levanto-a e sinto o seu peso, que prende a mão e cansa o braço. Aquele pedaço de arrumação, de coisas inúteis para iludir o corpo e os olhares, um satélite no meu planeta desgovernado, de massa impossível que não levita, detém-me os passos. Paro, com abandono largo a mão e logo aquele volume ordenado se derrama no chão, se misturando com o pó. Os meus planos que se despenham, por entre frágeis tecidos e o retinir de jóias brilhantes. Sento-me e decido: parto como nasci, sem bagagens nem planos, uma tela em branco, uma mala leve como uma breve extensão de mim mesma. Do passado nada carrego, a minha mala é um conjunto de penas leves e brancas do futuro.
Parto com o futuro aqui dentro, com a leveza do que ainda não aconteceu.
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