Quem diz que está só, mente, porque nunca está só. Mesmo deixando deus e os santos a dormir, nunca estamos sós.
Nós somos nós, e os fantasmas.
Eugénio disse um dia que se deitava ao lado da sua solidão, e lentamente contemplava o seu corpo suave e frio. Também nós nos levantamos e deitamos com os nossos fantasmas. Existem duas classes de fantasmas. Há os espectros de massas: a crise, o défice, a inflação, a guerra mundial, a bomba atómica, a diplomacia inepta, as fronteiras ameaçadas, os discursos, o capitalismo, o monstro da esquerda, o monstro da direita, o papa e a cabala e o ramadão. Mas muito mais pequenos, quais micróbios que assumem na placa de petri dimensões gigantescas, existem os espectros individuais, que são aqueles parentes que ninguém quer como seus, mas estão aqui, qual ligação visceral e sanguinária. Estes nados-mortos carregam bichos-papões, erguem falsos deuses dourados da vaidade e da soberba, elevam estandartes aos nossos mortos, e pesam, pesam. A respiração torna-se sofrida, os membros arrastados. É difícil viver.
Hoje é o dia em que escolhemos deixar cair os fantasmas. Hoje, com verdade ou malícia, eles, os espectros, ficaram para trás. Aqui só há luz, e ar e pessoas boas que nos amam. Aqui só há verde e azul, e a luz branca brinca na pele e no cabelo. Aqui respiro, e os meus pulmões processam veneno mas destilam mel. Cheira bem, a flores e a baunilha. E ali, há chocolate quente à minha espera.
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