Soou um tiro. Um bala que rasga com estrondo a brancura do dia. Um rastilho de faíscas se liberta, antecedendo com pompa, o ruído ensurdecedor do disparo. Tudo pára naquele momento: o olhar da vítima se detém: nem um pestanejo, nem um suspiro, nem uma gota de suor se derrama...nada se move, o tempo pára. E, no entanto, tudo muda como uma vaga gigante que se abate sobre a costa. De um momento de inércia, grandes mudanças se operam, e nada retornará ao princípio, se houve sequer um princípio.
Uma bala atingiu uma superfície de atrito. Penetrou a pele, escavou caminhos em tecidos antes intricadamente unos, estilhaçou ossos e, do impacto, uma explosão, que derivou em todos os sentidos.
Um novo lugar no mundo se cria. A bala chegou ao seu destino e deixou um rasto de destroços. Ao longe, um ténue bater de um coração cansado, que bombeia em último fôlego, um sangue que se perde inexoravelmente, por vasos corrompidos, gotejantes de vida que se esvai. Um lampejo de consciência atravessa atirador e vítima, miram-se, actores num filme exterior a si mesmos, num fio condutor de fim imprevisível. Um clarão de lucidez se ergue como um olhar de culpa, dois condenados que se despedem a da vida, tal como ela era.
Assim é quando se destrói com palavras e com espadas tudo o que foi criado. Quando se dá um passo em falso, quando se passa o ponto do não de retorno. Quando se vê que a vida passou e foi e seguiu...e assim se falou, se feriu, se escolheu. E tudo mudou. Cabe-nos a todos a vez de disparar. Uns escolhem a vítima, outras vítimas se plantam com o peito a descoberto, desejando balas que silenciem a dor. Uns escolhem disparar em contranatura, serem eles mesmos a vítima e o atirador, num só.
Mas todos nós, uma ou outra vez na vida, empunhamos armas, e disparamos, e carregamos balas...
Porque todos os que amam são exímios atiradores e, ao mesmo tempo, perfeitas vítimas.