sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Jardim para os lúcidos

Este jardim que outrora foi vivo, hoje morre agonizante sob a neve. Mesmo assim, moribundo, é belo no seu cinzento, na neve branca sobre a madeira queimada, nos pequenos tufos de verde, frágeis, à espera de, também eles, morrerem na sua vez. Este jardim, ah este jardim, tantas vezes contemplado, tantas vezes trabalhado... Fui feliz aqui, também tu foste feliz aqui. Aqui, senti os cheiros almiscarados da terra, das folhas que morrem e se renovam num ritmo ancestral, de transmutação. Aqui, cheira a quente e a frémita actividade, do zumbir das abelhas, do afã da formiga, dos vermelhos fogos, dos castanhos pardacentos. Ah, os cheiros das primeiras chuvas a fazerem amor com a terra, as mãos e unhas encardidas, as lagartas gordas retorcendo-se na lama. Os gatos nos fenos, as rosas, ui as rosas, o seu perfume doce e inebriante. Há tanto tempo que não vejo o jardim. As suas hastes altivas e másculas, os seus cálices acetinados, femininos, grávidos de vida em abundância. E os frutos! Maçãs redondas com buracos redondos de larvas, sabendo a terra e a natureza e a pecado. As laranjas podres no chão, as irmãs balançando-se nas árvores. Ah, o meu jardim, a minha inocência de tudo o que decorre do natural. Que saudades, que saudades, que dor cá dentro de tudo o que foi, do que acreditei ter sido. Recordo como se alguém carregasse no forward e tudo vejo apressado, os bichos as árvores os sorrisos as vozes, eu como uma árvore, porque tudo morre à minha volta e eu não morro, só mudo e não volto a ser feliz.
 
O meu jardim hoje jaz e é sepultura da inocência. O que te aconteceu? Sophia diria, o tempo, a dor, a morte e a sorte. Foi tudo o que me aconteceu. Foi tudo o que condenou este jardim. Agora repousa e subsiste, apesar de todo os pesares. O meu jardim, o teu jardim, mesmo que não vejas.


 
 Ver O jardim de Mão Morta I

Sem comentários:

Enviar um comentário