quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Rastilho e Pólvora

Existe um ruído de angústia de fundo no mundo. Mesmo no mais absoluto silêncio, sente-se um burburinho de impaciência, de intolerância, de descrença que a todos afecta. É como se tivéssemos atingido o ponto de ebulição, após anos de cozedura em lume brando. Atingiu-se o ponto crítico, de viragem ao abismo e já não é possível retroceder, já nada será como dantes. Até nas coisas mais pequenas se sente a mudança. 
Quando se vai ao supermercado e o preço das coisas aumenta, quando se paga uma conta e mais uma e mais a outra que vem mesmo no último dia do mês e, no derradeiro esforço, se usa o último tostão para pagá-la; quando se vai trabalhar e primeiro são 8 horas, depois são 10, depois são 14 e depois um naco de pão se atira ao chão para que os famintos se digladiem; quando os nossos filhos querem sonhar, querem um emprego, querem cuidar dos seus velhos um dia e toda a resposta é abrir as asas, cortar as raízes com violência e partir; quando a esperança nos morre lentamente, como um penso que se retira devagar e se sente os tecidos rasgar e descolar, camada a camada, pêlo a pêlo, nada mais se pode esperar que não uma revolta que brota violentamente sem qualquer controlo. Tudo é rastilho para esta pólvora que, insidiosa e firmemente, se acumulou no nosso ser. As vezes, começo a falar numa voz que é calma e conciliadora e, mal o abuso desponta, uma voz zangada e irascível irrompe. Quem é esta mulher, que não a reconheço... O que me aconteceu? Foi a dor, tempo, a sorte, a morte, ou foi algo mais? Foi a injustiça, a negação dos sonhos, o império da dívida, do dinheiro, que nos amarfanha a humanidade. Por isso, falo do recém-nascido que desejo, da restauração da inocência perdida e magoada. Como permanecer e atravessar incólume estas tempestades? Como conservar aquela parte humana e pura, crente e inocente que é o bem mais precioso em nós? Como se conserva a criança num mundo de adultos que já nascem velhos? 

Como, como, como, como?


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