Pai Natal verdadeiro, resolvi escrever-te uma carta. Pensei escrever ao menino Jesus, porque sempre me ensinaram que era ele que dava as prendas e seria sacrilégio creditar o seu aniversário a um velho gorducho de roupa vermelha como a Coca Cola. Mas hoje quero escrever a um deus humano. Quero sentir a minha humanidade legitimada, não diminuída ou aquém, mas plena de defeitos, de desejos, de caprichos e não me sentir condenada ao fogo do inferno por isso. Escrevo, então, a ti pai natal. O meu humano mais parecido com um pequeno deus.
Escrevo-te, porque também tu entendes o frio, o frio branco e vazio que por vezes não é só do inverno; também tu entendes o frio que vem de dentro, a solidão de não se estar só. Também tu te deves imobilizar à janela, dentro de casa, e em branco projetas esse bafo quente no vidro e com os nós dos dedos desenhas o teu nome. Também tu contas as moedas e investigas o alforge em busca de sortilégios para oferecer. Queres oferecer o mundo ao mundo, para sentires a intensa pertença.
Escrevo-te para te pedir coisas. Pedir e desejar, sem humildade. Acaso se é humilde em sonhos?
Peço-te para nascer outra vez, peço que me devolvas a inocência. Quero a cegueira de ver sem olhos, a surdez de ouvir sem ouvidos. Quero não ter mãos e tocar e que todos os meus sentidos sejam o sentir do pequeno pássaro que bate descompassadamente no meu peito. Quero que o som mais nítido seja o compasso do meu coração, que o debater das minhas entranhas seja o aconchego do meu sono. Quero ouvir a voz do outro como um sussurro leve, como o restolhar das asas de uma andorinha, como o bater de uma porta ao longe significa que quem amamos regressou em segurança a casa.
Compreende, pai natal, quero nascer outra vez para acreditar no futuro. Quero que o meu país seja sempre a minha casa, a nossa casa. Quero continuar a ouvir a minha língua, o doce cantar das mulheres, o trovão desgovernado dos homens. Quero ouvir o meu nome dedilhado com talento, com a sonância destes ditongos redondos, com a música do som a. Quero cuidar e ajudar a curar quem me ajudou a crescer. Não, não quero emprestar os meus talentos a quem não lavrou a terra, nem preparou o solo para receber as sementes.
Pai natal, na verdade, peço-te baixinho para ser imortal, mas não imutável. Quero poder mudar, sem perder o que faz de mim quem sou. Quero a constância das estações, a ocorrência inexorável das chuvas. Quero que continuem a existir fronteiras, os contrastes eternos entre o Bem e o Mal, entre a Luz e a Sombra.
Pai natal, ouve-me de mansinho, é perigoso falar alto...começaram a crescer as zonas cinzentas, começa hoje a adensar-se uma bruma e o espírito de deus já não paira sobre as águas. Começo a acreditar a medo, que a ordem do mundo está invertida e, agora, já se nasce velho.
Pai Natal, se não puderes fazer-me nascer de novo, faz nascer um herói das histórias. Um príncipe que mate dragões. Alguém que vá à frente e que crie pontes invisíveis sobre abismos. Pai Natal, se eu não puder nascer de novo, faz antes nascer um bebé de esperança. Para todos.
É este o meu pedido.
A tua criança grande que acredita em ti,
Ariana
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