sábado, 16 de abril de 2011

Manifesto do Amor

Recuso-me, recuso-me a acreditar que o Amor dos livros não existe. Não o amor à primeira vista, porque é de facto uma doença raríssima que quase passou a lenda. Quero antes acreditar que existe um Amor forte, que faz doer sempre e muito. Um Amor que tem tanto de sofrimento como de felicidade, cujo único fio condutor é a intensidade. Porquê, porquê me contentar com o hábito, o companheirismo, a relação "dá jeito e não faz mossa"? Talvez daqui a uns anos esse seja o horizonte possível, com a sede de intempérie saciada para sempre. Mas nesta moratória, exercito a esperança e iludo a descrença...

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Descascando a Cebola

Quando é importunada com perguntas, a recordação assemelha-se a uma cebola, que quer ser descascada, para que possa vir à luz aquilo que é legível, letra a letra: raramente de forma unívoca, muitas vezes como escrita em espelho. A cebola tem muitas camadas. Mal é descascada, renova-se. Cortada, provoca lágrimas. Só ao descascá-la fala verdade. O que aconteceu antes e depois do fim da minha infância, bate à porta com factos e decorreu pior do que o desejado, quer ser contado às vezes assim, outras de maneira diferente e desencaminha para histórias de mentira.

Gunter Grass utilizou a melhor alegoria do mundo para descrever o labirinto interior do ser pensante. Apesar desta estrutura labiríntica e inescrutável, é possível àquele que vive só há demasiado tempo e que aprendeu a usar essa solidão como conhecimento privilegiado, ter uma rocha dura em si mesmo, intangível como o núcleo da Terra. A este ser intensamente consciente, ocorre-lhe por vezes a forte sensação de que é ele que olha o mundo, de dentro de si mas, de repente, este ser sabe que conseguiu o impossível e que saiu de si e olha o mundo, com a intensa consciência de que só ele está aqui e agora, só ele olha o Universo com o olho do próprio universo. Penso que é a consciência alargada de si. Isto é tão brutalmente assombroso, que se exerce o movimento contrário, como uma sacudidela de ombros, e se procura esquecer que se assistiu (ainda que por breves instantes), de camarote, ao desenrolar da Vida.



domingo, 10 de abril de 2011

A mais dura escola humana

Estar doente é perder o controlo. É perder a maestria sobre algo que sentimos nosso e só nosso, no domínio da propriedade e do proprietário. Sempre me pareceu pouco compreensível que alguns gostem de estar doentes, tirando daí benefícios e até prazer...
A doença anula a vontade, porque impõe um ritmo muito proprio e muito seu que, integrando variáveis tão complexas, tem um comportamento difícil de prever e de manipular. A doença é uma prisão para a mente, deixa o ser manietado, amordaçado e dependente. Nada é tão avassalador para o Homem.
A doença é a mais dura escola humana, onde a aprendizagem é sofrida e sofrível, sempre por defeito, tendo em conta o que se perde e o tesouro que se pode recuperar...
É lamentável que para a maioria de nós, após o episódio de enfermidade, se imponha o lento esquecimento, o retorno à rotina que desvaloriza o que poderíamos ter aprendido.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

The Audacity of Hope

Ousar ter esperança, preencher os pulmões de um sentimento limpo e luminoso, desalojando a angústia. Este é o derradeiro exercício, pandoriano, pois a esperança convive com todo o mal, não o suporta mas torna-o mais suportável.

Um som de esperança:

sábado, 2 de abril de 2011

Consciência, Inteligência e Intencionalidade

Eis a fórmula de Deus. Inteligência para criar, intencionalidade provada pela presença de uma direcção e de um sentido no caminho evolutivo, consciência afecta ao seu produto final e inacabado, perfeito e complexo, o Homem. Como contemplar a Vida, conhecer a ciência e não ver Deus? Tentar vislumbrar um deus antropomórfico no Universo é quase uma blasfémia...Deus é luz perfeita, luz primordial. Tão perfeita e pura, que não conseguimos interiorizá-la na plenitude nem compreendê-la. Não conhecemos Deus, afloramos a sua perfeição e se nos deixarmos tocar, viveremos sempre na aspiração dessa luz, na frustração da sua distância e quase inacessibilidade. Aspirar e perseverar é tudo o que podemos alcançar. Pelo menos a maioria, que não é Buda...

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Hoje deitei-me ao lado

Hoje deitei-me ao lado da minha solidão.
O seu corpo perfeito, linha a linha
derramava-se no meu, e eu sentia
nele o pulsar do meu próprio coração.~

Moreno, era a forma das pedras e das luas.
Dentro de mim alguma coisa ardia:
o mistério das palavras maduras
ou a brancura de um amor que nos prendia.

Hoje deitei-me ao lado da minha solidão
e longamente bebi os horizontes.
E longamente fiquei até ouvir
o meu sangue jorrar na voz das fontes

Eugénio de Andrade