segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

A vida passa de ano

Um começo, sempre igual, mas mesmo assim um começo. Ocasião para pedir às estrelas que nos concedam mil e um desejos, que nos apaziguem ódios, que acalmem mares tempestuosos de raiva. Um começo para continuar a dizer adeus ao que nos aprisiona e do qual não conseguimos a libertação. Nesta linha de partida, somos corredores de fundo que não esquecem o que foram e já não são, e que recordam aqueles que iniciaram lado a lado e, algures no caminho, ficaram para trás. 

Chegamos ao fim de um caminho, para apenas ver que a meta é, na verdade, um novo começo. 

Começar, é respirar fundo e recuperar aquele fôlego precioso que seguia já esgotado. Neste ano novo, muitos começarão para serem pais, crianças descerão do sonho e materializar-se.ão em vida. Muitos filhos reencontrarão os pais e, destes, muitos morrerão sós e sem filhos. Muitas famílias degenerar-se-ão em alcateias, lobos esfaimados em tempo de carestia. Neste ano, muitos rebanhos se perderão por não terem o Bom Pastor, dilacerados por uma noite demasiado escura, um frio demasiado branco. 

Muitos começarão brevemente a amar e muitos morrerão em ciúme, em solidão ou, pior ainda, sem conhecerem o amor. Vidas suceder-se-ão em catadupa, sem se saber onde começam e onde acabam. A passagem do tempo é sempre uma ilusão. 

Muitos dormirão nesta passagem de ano, nesta passagem da vida pelo buraco de uma agulha. Mas, para aqueles que vivem acordados, desejo que encontrem um segundo de calma nesta passagem e, em segredo e no silêncio do seu coração, ouçam o clamor dos desejos dos mundo e a eles juntem uma oração sincera, um sussurro verdadeiro, de amor, de esperança, de coisas boas e puras. Algures, no ruído de fundo do Universo, seremos ouvidos.

É esta a minha prece, para todos.

Bom Ano de 2013


sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Em Voo Quebrado

Em voo quebrado, estendo as minhas asas. Penas cinzentas e descarnadas, ausentes de luz, tímidas no seu movimento de rebeldia ao Sol. Inclino a minha face ao sabor da luminosidade, aquela aura branca e cândida, como uma madrugada terna que amanhece nos braços de um amante. Rodo sobre mim mesma, esboço um movimento de voo; vacilo porque conheço a natureza defeituosa e incompleta do meu instrumento de voo.

 Ninguém me empresta umas asas. Ninguém me ensina a voar. Ninguém me eleva no seu colo de pássaro.

É um voo quebrado, que se ameaça sobre a montanha mais alta, mais encrespada, mais ampla. E eu queria a minha escadaria para o céu, assim: maior, mais bela, mais perigosa. Mesmo no regresso, esta é uma descida que não cansa. O regresso de um herói derrotado é sempre o de um herói. 
Perder e morrer, sempre lutando.  

Em voo quebrado, mesmo habitando um anjo feito estátua, de um branco sujo pelo pó das estradas, triste pelos transeuntes distraídos, seres que passam imóveis e inconscientes. Por dentro ainda se agitam estas asas de colibri em urgência, em desejo efémero. Ainda vejo ao longe aquelas flores e, por elas, morro em antecipação, em agonia pelo que ainda está por vir, pelo que ainda se guarda em sensual segredo, em luxuriante descoberta.

A viagem incrível e dolorosa de Acreditar. O voo quebrado de um crente.





segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Carta ao Pai Natal Verdadeiro

Pai Natal verdadeiro, resolvi escrever-te uma carta. Pensei escrever ao menino Jesus, porque sempre me ensinaram que era ele que dava as prendas e seria sacrilégio creditar o seu aniversário a um velho gorducho de roupa vermelha como a Coca Cola. Mas hoje quero escrever a um deus humano. Quero sentir a minha humanidade legitimada, não diminuída ou aquém, mas plena de defeitos, de desejos, de caprichos e não me sentir condenada ao fogo do inferno por isso. Escrevo, então, a ti pai natal. O meu humano mais parecido com um pequeno deus.

Escrevo-te, porque também tu entendes o frio, o frio branco e vazio que por vezes não é só do inverno; também tu entendes o frio que vem de dentro, a solidão de não se estar só. Também tu te deves imobilizar à janela, dentro de casa, e em branco projetas esse bafo quente no vidro e com os nós dos dedos desenhas o teu nome. Também tu contas as moedas e investigas o alforge em busca de sortilégios para oferecer. Queres oferecer o mundo ao mundo, para sentires a intensa pertença. 

Escrevo-te para te pedir coisas. Pedir e desejar, sem humildade. Acaso se é humilde em sonhos?

Peço-te para nascer outra vez, peço que me devolvas a inocência. Quero a cegueira de ver sem olhos, a surdez de ouvir sem ouvidos. Quero não ter mãos e tocar e que todos os meus sentidos sejam o sentir do pequeno pássaro que bate descompassadamente no meu peito. Quero que o som mais nítido seja o compasso do meu coração, que o debater das minhas entranhas seja o aconchego do meu sono. Quero ouvir a voz do outro como um sussurro leve, como o restolhar das asas de uma andorinha, como o bater de uma porta ao longe significa que quem amamos regressou em segurança a casa. 

Compreende, pai natal, quero nascer outra vez para acreditar no futuro. Quero que o meu país seja sempre a minha casa, a nossa casa. Quero continuar a ouvir a minha língua, o doce cantar das mulheres, o trovão desgovernado dos homens. Quero ouvir o meu nome dedilhado com talento, com a sonância destes ditongos redondos, com a música do som a. Quero cuidar e ajudar a curar quem me ajudou a crescer. Não, não quero emprestar os meus talentos a quem não lavrou a terra, nem preparou o solo para receber as sementes. 

Pai natal, na verdade, peço-te baixinho para ser imortal, mas não imutável. Quero poder mudar, sem perder o que faz de mim quem sou. Quero a constância das estações, a ocorrência inexorável das chuvas. Quero que continuem a existir fronteiras, os contrastes eternos entre o Bem e o Mal, entre a Luz e a Sombra. 

Pai natal, ouve-me de mansinho, é perigoso falar alto...começaram a crescer as zonas cinzentas, começa hoje a adensar-se uma bruma e o espírito de deus já não paira sobre as águas. Começo a acreditar a medo, que a ordem do mundo está invertida e, agora, já se nasce velho

Pai Natal, se não puderes fazer-me nascer de novo, faz nascer um herói das histórias. Um príncipe que mate dragões. Alguém que vá à frente e que crie pontes invisíveis sobre abismos. Pai Natal, se eu não puder nascer de novo, faz antes nascer um bebé de esperança. Para todos. 

É este o meu pedido.
A tua criança grande que acredita em ti,

Ariana





terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Recordar é fazer amor para velhos

Uma curva suave,
de corpo acabado de tisnar ao sol. 
Um moreno dourado,
de suor feito mel sobre a pele,
como um véu de pecado. 

Uma noite perfeita, que
se desenrola na memória.
Uma curva de sorriso
que se forma nos meus lábios. 
Fui feliz e, no entanto,
há um assobio de morte
nestas veredas.

Há algo fora do sítio,
uma estranheza no ar,
um prenúncio de desgraça.

Sinto o meu centro a desenraizar-se, 
um momento de glória e de 
abismo que se materializou 
do nada. De repente, 
A mudança como uma onda, 
abate-se com violência. 

A memória rasga-se como um tecido 
esticado até ao seu limite físico. 

É por isso que as pessoas esquecem.
Esquecem que podem lembrar. 
Esquecem para continuar.


É por isso que eu sei quem é o meu amante eterno, a minha alma companheira, o meu bálsamo, o meu deus das coisas pequenas. A minha memória, é a minha constante inventada, a minha estrela. Quando for velha e elefantídica, serei a matriarca das lembranças, reais e de fábula, a Ariana do fio, que tece e desfaz a sua teia. Serei aquela que balança a cadeira no alpendre, cuja face é um pergaminho enrugado, que recorda que viu nascer e morrer, mas não sabe verdadeiramente se viveu.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

O Lobo


É assim que me sinto. Como se alguém tivesse olhado para a minha alma e em seguida desenhado em papel e lápis o que havia visto.  Um ser pequeno, em corpo e alma, que segura com mão suada e gasta, num aperto desesperado, um fio que prende um grande lobo. Os meus medos num balão em forma de lobo, leve e etéreo, pressionando suavemente para ser libertado. Por agora, seguro-me aos meus medos e inseguranças, pela secreta ilusão de controlo, através de um fino cordel, ao qual dou apenas a folga necessária para o ver saborear a brisa. Curioso, não penso que são apenas medos, são também os meus sonhos. Sonhos que podem também ser feras devoradoras e traiçoeiras, de olhos vermelhos de sangue e de dor. Ergo-me vacilante do alto da minha pequenez vermelha, elevando quase com ternura e desvelo este balão, quase suspirando ser leve como a brisa e com ele sair voando, desvanecer em esperança sem nunca aterrar. Medos e sonhos, para mim, medos e sonhos é tudo o que seguro. Esperando, que aqui, na superfície lunar onde me encontro, este balão não tenha desenvolvido carne e olhos e sangue, ao invés de ar, e esteja à espreita na minha porta. Receio na mesma medida, sonhos e medos feitos realidade.

I keep the wolf from the door
But he calls me up
Calls me on the phone
Tells me all the ways that he's gonna mess me up
Steal all my children
If I don't pay the ransom
But I'll never see 'em again 

If I squeal to the cops (Thom York)


quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

O encontro da luz, da retina e do presépio

Neste frio de ossadas amarelas, nestas noites de branco vazio, neste luar brilhante de pérola no fundo do mar, olho o meu presépio ao longe. Umas figurinhas de cera com marcas de dedos gordurosos nas faces. A cálida luz dos anjos de parede, faz-me ver expressões abnegadas em Maria, um sofrimento antecipatório, de coisas inomináveis a acontecer em breve. Uma presença virgem de prazeres, mas experimentada em sofrimentos. Semicerro os olhos e quero acreditar que uma pequena lágrima se enrola nas pregas daquela face, e não é uma lágrima de tristeza. É um secreto prazer, um desperdício de orgulho que ela guarda para si. A certeza de que pariu um varão e há mais um insecto a povoar este mundo insecticida. Vejo mais ainda.  Um José erecto de vontade, acérrimo na sua constância. É um José seguro, que permanece à sombra de uma glória maior que toda a humanidade. O destino dele é ser pequenino e acreditar. Um José amarrado pelo amor, estéril na sua pequena alegria. Mas que espera forte, como uma palmeira num furacão, que verga e não parte. Há uma tristeza calada naquela figura presa ao chão. No meio, protegido por duas adultas figuras, uma surpresa e comoção corta dos meus pés o contacto com o solo. Naquela posição central, estou siderada por um bebé branco e puro, pequeno, que brilha mais do que as sombras dos seus pais. Que nudez é esta que desvia os meus olhos de tudo em volta e, nesta paisagem, só existe aquela criança nua que esbraceja num movimento perpétuo, braços e pernas roliços. Há algo que cala fundo neste lugar ermo que é o meu íntimo, há uma simplicidade arrasadora, um contraste mágico entre a palha dourada do telhado e a pele branca deste Menino Judeu que deveria ser preto. Uma ideia de calor, uma sensação de reconhecimento, um raio de ancestralidade atinge-me mesmo no terceiro olho, mesmo no meio da minha testa enrugada de espanto. Esta é uma família, em que o primogénito é uma criança e é rei. Esta é a minha família, a família com que todos sonhamos. Agora eu sei que este é o Menino Jesus Verdadeiro. Agora eu estou dentro deste presépio. Aguardo ser encerrada numa caixa, com o resto dos sonhos, das descobertas e das sabedorias, numa caixa no sótão, suspirando luz durante mais um ano.



sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

A teimosia de Pandora

Ainda há alegria no mundo. Ainda há bolas de sabão vacilantes no sopro de uma criança, ainda há este céu azul que nos protege, ainda há este sol que nos lambe as feridas. Permanecem risos por aí, intempestivos e desarticulados, que irrompem na vida sempre igual. Ouvem-se tímidos aplausos, comovedoramente verdadeiros. Porque sim, ainda há verdade neste mundo. Deambulando pelas ruas, cobertos de vergonha e tristeza, há ainda rasgos de roupa branca nas varandas, inocência por desvendar, que se guarda como fruto precioso dentro do ouriço. Ainda há água que cursa livre, que canta nas pedras, límpida e incorrupta. Por ela, gargantas sequiosas sofrem com orgasmos de sede aplacada, numa frescura líquida e pecaminosa. A cada gole, é o ímpeto selvagem desta água que se transforma em sangue e em suor e em movimento. Ainda há um banquete por terminar, há muito que comer e beber nesta terra. 

O que morre neste mundo, é a crença que tudo isto existe. O que morre neste mundo, são os sentidos. Neste tempo, viver é ficar cego e mudo e surdo. É não ver a beleza do mundo, é não se encantar com ela, porque perdemos o que nos desperta, o que nos permite permanecer ligados. Como toupeiras, só vemos para dentro e, cá dentro, só há cantos escuros e fantasmas vagueantes. 

Eu quero continuar a ver e a sentir. Eu quero acreditar. 
Ainda há, ainda subsiste, está lá fora, ao longe, mas ainda permanece...





domingo, 2 de dezembro de 2012

Daydreamer a tempo parcial

Eu sou uma daydreamer. Digo isto com pesar, com tristeza, porque os daydreamers não tem lugar no mundo. Atrasam a resolução de um qualquer assunto. Matam o tempo num sorriso idiota que só para si faz sentido. Só eles ouvem a música das esferas, só eles vêem aquele raio de sol que bateu em cheio na gota de chuva sob as rosas, só eles constroem abrigos de palha, pelo prazer de vê-los voar ao sabor do vento, filamentos dourados que se volatilizam no espaço, a louca alegria das tarefas inúteis. Só os sonhadores diurnos conhecem o contentamento secreto de se ser ridículo, de rir sem motivo, de fazer caretas ao espelho.

Os daydreamers experimentam a alegria de se ser quem é, mesmo que num palco interior que ninguém vê, mesmo que inventando aplausos. Sonham de dia, porque a noite é demasiado curta e pesada para sonhar com castelos de cartas e bailarinas indecisas no topo do mundo, sob um fio de seda. Sonhar é ser corajosa, é ousar acreditar em finais felizes. Sonhamos para enganar a realidade? Ou para tornar o regresso a ela mais suportável, mais real, e...mais doloroso. Mas com o eco de uma realidade alternativa, em que é possível ser-se feliz e inteiro.