sábado, 23 de agosto de 2014

A voz sem mestra

Há pouco alguém me dizia que se sentia a ficar muda. Como se o espaços fora dela estivessem cheios de nada. A única coisa que no seu íntimo calava fundo eram os silêncios. Foram pequenas coisas que foi reparando. O frio dos dias era mais intenso e as noites mais longas. O sono foi ficando pesado mas curto e ficaram os olhares fixos e demorados sobre as coisas apagadas: a televisão, as lâmpadas, o fogão. A vontade foi minguando como a lua na sua fase diminuta. A voz mais rouca, algodão nos ouvidos e pálpebras pesadas. A vida se sucedendo sem se contarem as horas. Fiquei triste. Evoquei na minha mente a impressão desta pessoa a cores, o seu retrato alegre ocupou a minha memória e a sua gargalhada alta ecoou nos meus ouvidos. O que foi que nos aconteceu? Onde largámos as mãos e nos escondemos uma da outra, atrás das moitas, a contar as folhas? Ainda te vejo inteira e feliz. Como lembrança viva, nao como amuleto, mas como companheira de viagem... Não percas a voz, nem as coisas dentro dos espaços. Não deixes de acender todas as luzes à tua passagem, de ligar a televisão bem alta e de deixar queimar o jantar. Se o fizeres, emudeceremos ambas. E uma parte de nos morre. Continuemos a cantar juntas. Para sempre.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Qualquer Reino

Em qualquer reino posso-me perder hoje. Ser o que fui. Ou tudo o que quis ser. Num reino onde nada nem ninguém morre. São árvores que crescem até ao infinito e que dão fruto todos os verões. Num reino sem fantasmas, onde posso descansar a minha cabeça, sem jamais olhar para trás. Todas as decisões, passadas e futuras, são abortos inconsequentes. Nestes reinos, apenas se é, não se tem de ser. Aqui não se espera, vive-se. Em qualquer reino posso perder-me hoje. Cantar bem alto. Dançar com os pés descalços. Num reino onde as borboletas nunca são casulo nem lagartas. São bichos que esvoaçam aqui dentro, numa pura alegria. Não se constroem castelos de cartas. Nem se chora por eles, quando inelutavelmente, se desfazem. Não há gargantas secas, nem corações a galope. Aqui não se anseia, encontra-se. Em qualquer destes reinos posso perder-me. Mas não o vou fazer. Hoje vou ser rainha a dormir. Apenas no sono. E, enquanto estiver acordada, vou esperar, ansiar, ter medo e amedrontar. Não se pode reinar e ser real.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Algodão Doce

Hoje, entre nós e as paredes e as coisas, se instalaram nuvens de algodão, que se dobram sobre si mesmas como degraus de uma escada impossível. Algodão como nevoeiro que se pode tatear e cheirar, saborear a sua doçura pungente, como um perfume velho de amêndoas que se cola às narinas e à pele. Sinto os seus pequenos cristais de humidade a colarem a minha voz. Nos meus ouvidos, criaram eco como uma palco de um teatro antigo, numa péssima acústica em que só a minha voz nasalada se propaga. O algodão emudeceu-nos um para outro. O algodão ensurdeceu-nos num queixume miudinho, que às vezes escuto como um lamento na noite, como o último cântico de uma nau que naufraga. Este nevoeiro é um naufrágio. Afunda-se a vontade como uma âncora. O algodão suaviza-nos os contornos, mas turva-nos a água. É difícil enxergar um e o outro. Os dias sucedem-se. Devagarinho, despega-se o algodão da alma. Dissolve-se quando lágrimas de chuva começam a cair. Na pele, rastos de doçura rançosa, como salitre, recorda-nos que ainda não está tudo limpo. A pele traz ainda a humidade opressiva daquele nevoeiro de algodão. Está tudo ainda frágil. Vai-se lambendo a pele lentamente. Um do outro, para os dois, é a cura. Às vezes, como numa feira popular, depois do algodão vêm as pipocas e as voltas loucas nos carrosséis. Mas, para nós, é o tempo das madrugadas de asseio, depois das noites quentes de festa. Os nossos destroços, como o algodão, dissolvem-se como flocos varridos dos cantos pelo vento. E sobrevêm os espaços, e as paredes e as coisas. E nós, náufragos, no meio, tentando reconhecer-nos.