segunda-feira, 23 de setembro de 2013

O Argonauta das sensações verdadeiras

Vou tirar a carne destas palavras, descarná-las dos seus sentidos dúbios, dos seus segredos e sussurros farsantes.
Vou tirar o suco guloso desta fruta desmaiada, posta como tentação em cima dos muros, focos de distração de tudo o que vive e morre para lá das vedações.
Vou tirar o sopro desta voz, expô-la até aos ossos amarelados, destituí-la do seu canto de sereia, melado e colado aos ouvidos de cera, duros para ouvir este silêncio, esta beleza nua das coisas mudas.
Vou passar todas estas palavras pelo crivo da nudez absoluta, deixar cair tudo o que engrandece e escurece, deixando entrar, opulenta, a luminosidade pura das coisas que o são, sem se que se forcem a ser.
Vou desmanchar este corpo, como se dispõe um porco, se parte e reparte a sua carne e, de uma forma visceral, vou deixar partir ao vento cada pedacinho do meu ser, pôr o meu coração ao bater dos dias e das horas.

Quero ser o que sinto. Quero ser esta grandeza que transborda dentro de mim.
Que as palavras não mais amarfanhem este sentir. Que a voz não mais abafe este silêncio que cala no íntimo.
Quero ser esta força natural que se derrama de mansinho e não se doma nunca.
Quero ser em uníssono com o que me faz feliz. Dar-lhe a mão. De olhos fechados, sentir o seu calor.
E jamais esquecer. E para sempre recordar: é assim que se faz amor.





domingo, 8 de setembro de 2013

Telepatia

Gastámos as palavras, meu amor
À conta de as querermos meter cá dentro,
Dentro de tudo o que se sente, à medida de
Uma criança crescida que, à força, se tenta enfiar nuns pequenos sapatos.

Gastámos os passos em vielas escuras
À conta das arestas por limar, dos vértices por vencer
Das esquinas afiadas, do erro e da desilusão e de
Tudo o que são pequenas pedras e leves poeiras.

Esquecemos que há coisas
Demasiado grandes para serem ditas
Demasiado profundas para serem alcançadas.

Lembramos da verdade do que está dentro,
Daquilo que não se pode ver e se sente
Daquilo que não se pode dizer e se ouve.

E calamos, bem fundo, felizes por sermos um para o outro,
Sem corpo, sem consciência, sem palavras.
Apenas com o sentir.




sexta-feira, 30 de agosto de 2013

A chegada dos pássaros e a transmutação

Eles chegam, num trinado ininterrupto, numa alegria que assim o é porque é simplesmente, sem casca, sem abrigo, sem subterfúgios. Nos pássaros e nas coisas da natureza, o que se vê está por dentro, aquilo que é e o que o anima é o próprio corpo. Há uma verdade intransponível  na mudança das coisas exteriores a nós. Não há processamento do ser; há apenas ser. É por isso que, por vezes, entre o sossego e o arvoredo, entre o que é secreto e o que é conhecido, entre o tempo e a vontade, há momentos em que expomos o rosto à luz, em que nos calamos num silêncio de fundo, em que nos esvaziamos de tudo. Um momento que o vento fustiga o rosto, e o cabelo se entrecruza em loucos fios de luz. É nesse momento que se desliga o fio de pensamento. Em que o mundo se nos meteu dentro, o mesmo vento de fora é o mesmo que agita este coração suspenso e a água que se enrola em ondas de tempestade é a mesma que percorre as veias e se transpira em gotas sobre a pele. Às vezes pensei que seria impossível evadir-me com um outro. Como se ter o corpo dado aos dias e ao mundo, fosse um fenómeno de íntima e solitária entrega. Não pensei que poderia um dia ser aquilo que me anima, sem palavras ou outras falácias de ocasião, ser o que sou e ser o me alegra: a chegada dos pássaros, a transmutação do mundo. Ser o que vejo, entregar-me a este vento e pegar a tua mão, diluir-nos os dois em líquido, em verdade e em sentimento. E regressar, com a recordação do que é verdadeiro tatuado na alma. 

Este é o verdadeiro caminho de sabedoria.


segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Há dias que são filosofias

É tarde no dia, mas cedo para nos descobrirmos aos dois, de mansinho, como se desvendam as coisas secretas, de amor e de sombra. É tarde e o sol se desmaia sobre o mar, lambe-nos a pele quente e sequiosa, como uma segunda pele de luz. É cedo para nos despedirmos, os corpos permanecem numa avidez que se desenrola devagar, como um prazer que se parte e reparte e se prolonga deliciosamente no tempo. Entardece, e como um suspiro sai a tristeza como a última cor abandona os ossos. É uma evocação feliz, é um regresso a casa, ao útero materno. E cedo se instala a noite e o derradeiro pôr de sol se eclipsa perante o nosso olhar que o persegue. É tarde para gravarmos estas últimas cores na memória, há tempo apenas para mete-lo dentro de nós como se aprende as coisas naturais, de respirar e de dormir.
É tardia esta saudade, é cedo ainda e a languidez dos segundos cola-se à alma como uma memória íntima, quase primitiva. Nem é tarde, nem é cedo. Estes são os minutos sem tempo, a eternidade em segundos que se desfazem como que tombando, em tatuagens de tinta indecifrável. Dentro de nós, um tempo imenso nos abriga do entardecer das coisas, este sentir não tem idade.


sexta-feira, 26 de julho de 2013

Ser feliz de mãos vazias

Ainda há pouco tudo me faltava. E tinha risos e choros, tempos infinitos, livros arrumados, páginas por decifrar. E tinha dias de sol e de chuva que caía devagarinho, como uma carícia. E tinha árvores que docemente se balançavam ao vento. E tinha um irmão e uma irmã, e um pai e uma mãe, e mãos e pernas e alpendres para descansar ao entardecer, quando o fôlego do dia se me escapava por entre os lábios. E tudo era abundante no meu regaço e, ainda assim, o meu colo permanecia estéril e o meu coração pesava a cada batida. Afinal, ainda tudo me faltava.

Agora, já não tenho tempo porque ele se escapa por entre os dedos entrelaçados, como areia movediça. Já não tenho livros arrumados; estão dispersos no fio do pensamento, em que devoro, voraz, recordações de palavras, para as reproduzir com doçura, para me recordar que também eu estou a viver um romance outrora lido. Agora, já não sei se são dias de sol, ou de chuva, porque todos os dias são de bruma fora da janela, dentro do quarto só há o branco dos lençóis e das paredes caiadas, deste sítio de suspiros. Agora, já não há irmão ou irmã, nem pai nem mãe, há uma cândida existência, omnipresente, instalando-se com parcimónia em todos os recantos, reclamando como conquistador os despojos de uma vida antes vazia, para agora a insuflar com entusiasmo. Afinal, já nada me falta e falta tudo: falta onde antes eram coisas e agora são tesouros. Assim, nada me falta, perdi o que não tinha, para conquistar o que anseio ter.


segunda-feira, 15 de julho de 2013

Bagagens de nada na Partida para lugar nenhum

Posso fazer as malas, uma e outra vez. Fazê-las e desfazê-las com violência, com ecos de tempestade, ou com doçura, lentamente tombando as roupagens dos vícios e com amor despedir-me, dobrando, como pergaminho, as meias, as camisas, os vestidos de sol e de areia. Faço e desfaço estes volumes de adeus, rasgos de passagem por entre as medas do tempo e do espaço, e penso que é breve o movimento e longo esquecimento. Esta deriva de partida, subtrai-me à paz de não sair desta casa, de me quedar imóvel numa vida em suspenso, pelo fio esticado por entre as montanhas. Da minha vida crio compartimentos, estabeleço fronteiras invisíveis, desfaço uma narrativa de viagem. A mala está devidamente arrumada, num movimento artificial de ordem e precisão. Falso, como é falsa a organização que criamos para a nossa vida, a história que contamos a nós mesmo sobre o desenrolar dos acontecimentos, como nos perdemos e ludibriamos na memória que, insidiosamente, vai desfiando corredores inexistentes, saídas de emergência e janelas altas para o mar. A mala está pronta e este ímpeto de perfeito acabamento, de arestas limpas e arejadas, propulsiona a minha mão sobre a aba. Levanto-a e sinto o seu peso, que prende a mão e cansa o braço. Aquele pedaço de arrumação, de coisas inúteis para iludir o corpo e os olhares, um satélite no meu planeta desgovernado, de massa impossível que não levita, detém-me os passos. Paro, com abandono largo a mão e logo aquele volume ordenado se derrama no chão, se misturando com o pó. Os meus planos que se despenham, por entre frágeis tecidos e o retinir de jóias brilhantes. Sento-me e decido: parto como nasci, sem bagagens nem planos, uma tela em branco, uma mala leve como uma breve extensão de mim mesma. Do passado nada carrego, a minha mala é um conjunto de penas leves e brancas do futuro. 
Parto com o futuro aqui dentro, com a leveza do que ainda não aconteceu.


terça-feira, 2 de julho de 2013

Quando o pupilo está pronto nem sempre o mestre aparece

Já estiveste perto de tudo o que era certo, perfeito, justo e mesmo assim a hesitação condenou os teus passos a uma inércia quase insuportável? Já desejaste com todo o teu coração, sentir, conhecer, confiar e mesmo assim a dúvida petrificou o teu gesto, numa perfídia indecisão que penosamente arrasta todos os segundos dos teus dias?

E assim se desenrola um pequeno inferno, como contas de um rosário de ansiedades e pequenos prenúncios de desgraça...
São noites de inúmeros acordares, uma hora e após outra e outra, entrecortadas com sonhos devastados, ansiosos pontos de encontro que não se acham, sombras que se encolhem nas esquinas do pensamento.

Decidir é reviver erros, ter certezas é matar a vontade de querer mais e além e aquém do que se tem agora. Mas a indecisão é buraco negro que suga o universo. Se escolher é viver ou morrer, não escolher é ir-se morrendo. 

Aguardo a minha espada para escolher.




domingo, 16 de junho de 2013

Banco de sangue

Exangue, pálido,
Escorregadio como peixe morto na banca do mercado.
Ainda sem podridão nas narinas,
Entre o não vivo e o moribundo,
Que ainda assim consegue ser fresco para a boca de alguém.

Queda-se no seu marasmo,
Sua parcimónia perante o inevitável
banquete de carne e de água
e do seu sonho de vida.

Tarde de mais para agitar
Guelras aflitas em busca de
Ar, como pequenas bolhas
de liberdade, de criação.

Lamento, como canto de sereia em
Abandono, dançando num salto
Impossível sobre as águas,
Escuras e laivos de azul, reflexos de
Sol sobre a cabeça, ah...

A liberdade, de ser, de se escolher
Morrer com a luz a dançar no
Corpo de escamas indivisíveis como
Espinhos de uma mesma flor que
É bela.

Ah sangue que coagula,
Gorgolejo de adeus, da
Vida que se esvai em
Minutos eternos.

Bate, bate coração de
pequenos vasos, emaranhados
entrelaçados, num abraço
Inviolável, como os amores das
Despedidas, intensos e efémeros.

Enche-te de sangue,
Coração exangue e pálido
Ali, há um banco de sangue de
Irmãos nas mesmas guerras e
Batalhas infames pela
Vida e pelo
Amor e pela
Fé.

Transfunde-te de força
Renovada e vive uma
E outra vez, mesmo
Acabando naquela
Banca de venda da
Vida e de outras ilusões.


quarta-feira, 29 de maio de 2013

Short Story de um despertar

São três da manhã. Está tudo branco e tranquilo no quarto de hospital. Uma luz ténue e tremeluzente incide na minha nuca e eu sinto o seu calor desmaiado na minha pele. Olho em volta, espreitando por entre pálpebras adormecidas, empastadas de sucos secos, lágrimas retidas, sem inclinação para rolar. Estradas que se cruzam num emaranhado complexo, um sistema de tubagens transparentes encruzilhadas resolvidas com clampes e clips e torneiras e seringas. E eu no meio, branco, leitoso, estradas azuis que se cruzam e se abrem para o exterior, cateterizadas, líquidos brancos e transparentes com cheiros indecifráveis, a comida de cão e a desinfectante, pungentes, que ferem as narinas. Narinas? Que fluxo é este que soa como água em cascata e sopra como deserto nas minhas cavidades sem pêlos... Oxigénio? Ainda respiro? Um fôlego na noite mais fria do deserto mais frio, é assim que saboreio cada inspiração. E a boca? Seca, cristalizada num hálito a podre, a morte, a palha seca e alguma humidade que se cola como se lambe um selo de carta. Um impulso nervoso que envio frenético para a parte de baixo do meu corpo. Ainda caminho? Ouço um crepitar de lençol que se balança levemente, sobre os meus dedos. Um esboço de movimentos é tudo o que vejo, quando dentro de mim já dei cambalhotas e pinotes como potro louco. Músculos que se derretem como manteiga em lume brando, numa sertã preta brilhante... FOME! Como pungente, como murro que criou um vácuo no meu ventre, um fogo que queima em gelo, sinto fome louca de garanhão no centro reprodutor. Tento falar. VOZ? É silêncio que ouço. Tento localizar...cordas vocais, garganta. O que é isto? Um tubo cilíndrico que tacteio com a mente. Merda, mais um tubo. Olho para o nariz e confirmo uma mangueira que me sai da cara . Estou em animação suspensa, como um poster dos anos 70 de vida suspensa no gelo, à espera de um futuro melhor. Tento falar, vejo os lábios moverem-se quase imperceptivelmente. Um gorgolejo aflito escapa-se num som horrível. Um afogado no seu último suspiro faria melhor. As minhas mãos, dedos descarnados como um cadáver ou como uma ave de rapina prolongam-se em aparente inanição. Um botão vermelho brilhante, debaixo do dedo indicador. Uma campainha, uma janela para o mundo, reflito. Ordeno à polpa que resta na ponta do meu dedo que se projete com toda a força sobre aquela montanha impossível, de chamada para a vida mais além. Ouço, ao longe, um som estridente. Passos próximos no corredor, pés debatendo-se no chão vazio. A porta desliza. O ar desloca-se, há mais um corpo no quarto, quente, uma respiração sôfrega de esforço e de ansiedade. Num segundo, deu a volta a cama, eu estou de lado, penso. A primeira vez de um homem, ou do que resta de um homem. A primeira vez desde que acordei, a minha desfloração na humanidade. Um olhar límpido e castanho, profundo como a noite mais escura, quente como a terra verdadeira, da minha aldeia. Uma mulher, que maravilhoso regresso ao mundo dos humanos, mesmo que ainda em forma de máquina, mesmo que ainda em forma de sonho. É um sonho não é?



segunda-feira, 20 de maio de 2013

A vontade não tem sombra

Já vi todos os paradoxos, os contrários, os impossíveis e os inesquecíveis da vida.
Dias de Sol transformarem-se em violentas tempestades. 
Da mais pequena semente à mais frondosa árvore em apenas alguns dias.
Solos infecundos e rochosos e uma delicada flor azul, que se expõe em assombro.
Crimes hediondos e criminosos inocentados. Lobos em cordeiros.
Perdão em vez de vingança. 
Amores eternos e não correspondidos, que subsistem estéreis à intempérie do tempo.
Velhos e rugosos com a força da juventude, jovens que cedo são velhos e carcomidos, encolhidos sob mantos de tristeza e de inércia. 
Um país de paraísos que se afunda na abundância.
Doença que ceifa na juventude e um amor constante que se derrama na dor e a suporta.

Já vi tudo isto e, no entanto, ainda não tinha vivido esta força transformadora, que vira o mundo ao contrário. Ainda não tinha experimentado a vontade que atropela o corpo. A vontade que não tem sombra nem fantasmas.

Acreditar nisto é bálsamo para os fracos e é lição para os fortes.

Por isso, quando tudo se tornar negro ou cinzento, quando o centro de dor explodir numa luz cega e branca, quando a incerteza for a matéria que constrói os dias, finca os teus pés no chão, sente o solo primitivo e eterno, fecha os olhos e deixa que nasça em ti a força da vontade, que ela te preencha lentamente, cada cavidade, cada estrada de sangue e de suor, que se derrame em cada poro, que se solte em cada sopro de vida, em cada batimento cardíaco e, aí, dá um passo, e depois outro e outro e outro... 
E assim se caminha, se vive e não se deixa morrer.




sábado, 11 de maio de 2013

To the wonder

Amar. Arriscar solidão, traição, mentira, desilusão e a possibilidade de transformação em algo Maior. Acordar o divino que permanece adormecido em cada um de nós. Ver, ver de verdade, sem máscaras, sem coberturas, sem lentes, o Outro. Um outro que é frágil ou forte, um estranho por vezes. Um estranho que habita em nós quando a ele dedicamos o amor. O nosso passageiro branco, ou negro. 

Um mundo das escolhas, das possibilidades, ou de nenhuma, pois quem ama já fez todas as escolhas possíveis, ou a única possível. Amar é reiterar esta escolha, não obstante... Tudo.





quinta-feira, 9 de maio de 2013

Fome ou Pátria: a resposta do canibalismo em tempos modernos

Uma planície sem contornos, estendendo-se sem fronteiras até onde morrem todos os olhares. Nenhum caminho, nenhuma direção. Sob os pés, um solo sempre igual, terroso e remexido, calcado mil e uma vezes infinito, por tantos pés e cascos de diversas bestas e seus cavaleiros, no alto montados, derramando-se desde o início do mundo, sobre o dorso cansado de seus escravos. Nenhuma orientação, o olhar é sempre para baixo, pois aqui morreu a fé e só há pessoas rasteiras e bestas quadrúpedes de corcundas milenares, sempre espezinhadas - o céu é para o loucos e sonhadores e assim não se vêem as estrelas. Há vermelho e verde do chão, sempre igual. Há cheiros pestilentos de fomes e de sedes nunca saciadas, há o odor nauseabundo, disfarçado de perfume, da corrupção, da indignidade, da desonra. Até o suor dos escravos é doce fragrância comparada com esta podridão de coisas.
Os mesmos de sempre comem os outros de sempre. Há parasitismo sectário, há sanguessugas pretas alimentando-se do sangue dos incautos ou dos inocentes. Há canibais e comensais, neste banquete de pobreza e de incompetência, há apetite para todas as coisas. Aqui, nesta planície que é Portugal ou qualquer outra terra moribunda, os olhos estão cegos e os ouvidos estão surdos: só há bocas escancaradas, varredores de necessidade, sorvedores de esperança e de vontade. 
Não tardará a reinar a desolação e a planície será deserto ou inferno.
Ao longe uma criança nua. Um arauto da desgraça ou um estafeta de esperança. Uma nau que se olha com saudade, nesta planície de marinheiros em terra e de mulheres que esperam de pés descalços. Vejo-a ao longe e, breve e sorrateiramente, as bestas de carga estendem o seu olhar cansado, e um brilho derradeiro se estende em ondas... Um desejo, uma vontade. 
Que esta criança cresça portuguesa. Que esta nau retorne e transforme este cais de origem. Que as mulheres não morram viúvas. Que as crianças não fiquem órfãs. Que as jovens não envelheçam virgens extenuadas numa maternidade adiada. Que as mãos dos homens não estejam vazias, com bolsos sem fundos de dignidade, com olheiras até ao peito, que esmorecendo se contrai, mais por hábito do que por entusiasmo. 
Que tudo isto não seja planície. Antes vale, ou montanha, ou mar encrespado. Antes vida do que morte.


terça-feira, 7 de maio de 2013

Verdadeiros reis caminham nus

Acreditei, durante muito tempo, que caminhava. Enganei-me, claramente. Não caminhava, acumulava. 

Coisas: pequenas e grandes. Pedras: redondas e angulosas. Desertos: frios e abrasadores.

Não caminhava, os dias sucediam-se numa roda dentada, que dolorosamente e aos soluços girava, ao sabor de um laborioso esforço, mais por hábito do que por vontade.
Agora que parto, agora que caminho, vejo que me despojo de tudo que acalentei como tesouros e que, agora, vejo como fogos-fátuos de vergonha, efémeros e vazios de eternidade.
Caminhar não é perder... nem coisas, nem pedras, nem desertos. 
Caminhar é a derradeira liberdade: é ter controlo sobre e não se ser controlado.

Parto, e vou quase nua, as minhas vestes transparentes são o medo... e a vontade.

E esta é a verdadeira forma de se partir, de se caminhar e de se ser. Como se nascesse de novo.




terça-feira, 30 de abril de 2013

São gigantes debaixo da poeira dos dias

Fim de Abril.

Frio intenso, que de lúgubre se veste pela manhã e de tristeza se cobre ao entardecer, para dormir.
Frio que mumifica os ossos, ressequidos, por uma sede qualquer.
Nunca saciada, lábios que se colam entre si, entreabrem-se em lascas de pele densa, como asas de moscas que jazem inertes no papel de uma criança; onde desenha, numa aparente ingenuidade, carros e flores e casas e sorrisos, com amarelos e vermelhos enfatuados.

Pele que se desprega sem suor, rugas que se traçam como sulcos impossíveis, um rio que há milhões de anos se insinuou na montanha.
Um cansaço velho como o mundo, que tomba os joelhos como banha que se derrete ao fogo brando e subjuga os ombros num ângulo de doloroso abandono.

Há uma eterna despedida em seus passos, como se cada avanço fosse uma canção, que baixinho entoa adeus, adeus, adeus...extenuantes sussurros, incessantes, ciciam a eternidade.

É um velho dizem alguns. Eu vejo, e digo, é um jovem. É um jovem de hoje que ontem nasceu velho.

Tudo tem o odor do que é antigo, ou pior, do que já não tem serventia, que é como ser velho antes do tempo. São pessoas e são coisas vazias num sótão de cartão. E tudo está recoberto com poeiras de mal-entendidos e de ressentimentos.

É preciso um pelotão de fuzilamento. É preciso morte violenta para se começar limpo.
É preciso deixar a velhice do tempo, do espaço e das coisas esquecidas e voltar a nascer.


segunda-feira, 15 de abril de 2013

A derradeira liberdade

The sea's only gifts are harsh blows, and occasionally the chance to feel strong. Now I don't know much about the sea, but I do know that that's the way it is here. And I also know how important it is in life not necessarily to be strong but to feel strong. To measure yourself at least once. To find yourself at least once in the most ancient of human conditions. Facing the blind death stone alone, with nothing to help you but your hands and your own head.

Christopher MacCandless in Into The Wild

Vejo-a alta, um vulto branco
perante um mar azul, encrespado
de espuma e de raiva.

Vejo-a vacilante, mas enraizada
um abandono que ali a plantou
um desespero que ali a congelou
Lá, naquelas rochas frias de 
negras areias, de seixos redondos.

Vejo-a líquida, como barro que 
se desmancha e se molda,
numa transparência impossível
como água que cursa sincera,
mas inescrutável.

Vejo-a toda, e está nua.
Aquilo que a anima 
está à superfície.

E é uma rosa pequena,
que sobreviveu ao Inverno
e agoniza na Primavera.

Vejo-a e quero falar-lhe.
Quero que pare e se volte.
Para o que era, o que foi,
Para a vida que a espera.
Mas detenho-me, imóvel.

Vejo-a, e sinto a sua agonia.
Mas quero que escolha.
Quero-a livre e viva.

Vejo-a e é uma mulher.
Olho-a e é o medo.
Encontro-a e é a coragem.

Vejo-a e passei à frente.
E é a liberdade.


terça-feira, 2 de abril de 2013

Amor: a inevitabilidade cósmica.

Saibam que, desde que eram pó
Das estrelas, viajando à velocidade da luz
De esferas de ventre quente, de buracos
Negros, sem som de anjos, com fulgor virgem
Da vida a começar, já eram amados.

Saibam que, desde que a vida é matéria
Em vós, no nosso corpo, o amor já
Se inscreveu, desde sempre,
Para sempre, para além e
Aquém da vontade própria,
Ou alheia. Somos amados e,
Nascendo já em débito, somos
Sedentos de amar e deste amor.

Um amor que não é paixão.
É constância, como o tempo
A dor, a morte e a sorte.
É o amor sereno, é a paz
De se querer o bem e de se desejar,
Sem urgência, o bem.

Um amor que é liberdade,
Um ser livre que escolhe
e se aprisiona, porque assim é
a perfeição de todas as coisas.

Saibam que são amados, mesmo que
não se sintam merecedores. Porque
a criatura é aparelho divino para
Amar. E ser amado, desde sempre.

Crer nisto é difícil.
É crer que também as mariposas
Mesmo no escuro, tontas de sede
E de luz, feias e despidas, são
Dignas deste Amor.


terça-feira, 26 de março de 2013

Ser rei de si mesmo, ou ser ovelha no redil

Sempre me pareceu terrível o abdicar da liberdade individual, sempre me pareceram impossíveis os longos invernos de ditadura a que tantos foram subjugados. Mas mais impossível ainda, sempre me pareceu a vontade consciente com que muitos se entregam as estes regimes, os seus desejos de rendição e de alienação a um projeto individual, a forma fácil como estas ovelhas se mesclam num qualquer rebanho que  cegamente lhes garanta pasto e tranquilidade.

Qual o conforto na renúncia ao exercício mais sublime da humanidade, a sua livre escolha?

Ocorreu-me, como um relâmpago por demais por si evidente, que a liberdade é nudez absoluta, é ser rei de um Eu caprichoso, de um reino longo e pouco pacificado, uma terra onde breve é a alegria, muitas são as dúvidas e profunda é a solidão.

É mais fácil ser ovelha em rebanho, mesmo que loucuras e mortes aconteçam nas pastagens. Negar-se o privilégio de escolher, evitando-se assim a culpa, contando a si mesmo insanas narrativas de se ser herói coletivo, em campanhas absurdas, sem heróis nem vítimas, apenas destruição.

Ser rei de si mesmo, assumir cada decreto louco deste eu, assim livre para errar, para agrilhoar a si mesmo e a outros em longa agonia. É um salto no abismo, é incomensuravelmente mais difícil.
Mas é também ter o poder de se ser tão verdadeiro como possível, ser-se inteiro, sem medidas, sem fronteiras. E, num golpe de sorte divina, ser-se amado por isso mesmo, e por alguém igualmente livre.

Não entendo a sedução pastoril da ovelha. Mas vejo a sua segurança, a sua quietude.
Mas isto não é ser humano. É servil animalidade.





sexta-feira, 22 de março de 2013

Estar triste é ser natural

Nos dias de hoje, toda a tristeza é mal-vista. Estar triste é facto de tal forma pernicioso, que todos se excedem nos expedientes para exterminá-la, amarfanhá-la, abortá-la mal desponta em caras fechadas, sorrisos amarelos ou lágrimas copiosas. Ora, estar triste é, muitas vezes, tão natural como a dor na pele se acaso nos picamos na rosa, tão certo como o eriçar dos pêlos num dia de frio, e deve ser deixado livre para se derramar, até não mais haver ímpeto na sua fonte, nem caudal que o alimente. 

Não se prescreve um qualquer lenitivo ou remédio ou xarope para a tristeza. O próprio remédio é mesmo vivê-la. Permitir-se respirar em tristeza é a salutar medida do se sentir vivo. Estar triste não é perder esperança. Estar triste é dar-se ao corpo e à alma, tempo e espaço, para se ir tacteando aos bocadinhos, fenda a fenda, golpe a golpe, ferida a ferida, e gentil e serenamente, encurtar abismos, suturar golpes, encerrar feridas.

Não há soluções mágicas para a tristeza. A própria solução é já raiz do problema. Tempo e paciência é o que nos cura.


domingo, 17 de março de 2013

A máquina e o sonho

Todos temos duas vidas. A primeira, a que sonhamos na infância e acalentamos, como pequeno tesouro, durante toda a vida adulta. A minha primeira vida também tem grandes desertos como os de agora, mas outrora, estendiam-se sob grandiosos céus de noites repletas de estrelas e detrás de cada pedra ou duna, um insecto perscrutando a noite, sob pequenas patas que num passe de mágica eram asas, e levantavam voo. Nesta primeira vida, há sempre risos e, mesmo quando há lágrimas, são de conquista, são de vida, porque nesta vida original nunca se morre. Nesta vida, todos são altos e eu sou adoravelmente pequena e todos me protegem. Às vezes, ponho-me de bicos de pés e lidero exércitos a fingir, com baluartes brancos de flores amarelas, e saio sempre vitoriosa. Não há prisões de ciúme ou de soberba. Há amor sem pensamento, e isso é liberdade. Esta é a vida verdadeira, a que espero regressar.

A segunda vida é falsa e prática e útil. É funcional, como são todas as máquinas que produzem. Esta é a vida em que morro, em que estou presa, em que penso. E tudo é grande e deserto, como são grandes estas pedras que engulo. Não há maravilhas pequenas, não há conquistas limpas.

Pela voz de Álvaro de Campos,

Na outra somos nós,
Na outra vivemos;
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer;
Neste momento, pela náusea, vivo na outra...



sexta-feira, 15 de março de 2013

A companheira mais fiel

Ontem deitei-me ao lado dela, o seu corpo frio a derramar-se junto ao meu, uma frieza que enregela os ossos e imobiliza o coração, que bate como agulhas de gelo num relógio de metal frio. Ela, a minha companheira, sempre e ad aeternum fiel, a que não é humana, antes sombra, antes impressão amorfa nos lençóis. Ela é leal, como um cão negro cujo uivar é certo a cada promontório, na noite escura, sob uma lua branca e cheia. Ontem deitei-me pensando que ela poderia não estar; o dia empurrou-me para outros parceiros bem mais sedutores: as palavras, os sorrisos, a perspectiva de uma luz intensa numa porta semiaberta, que empurrei com cautela. Por momentos fui feliz, como o são todas as crianças frente a uma vitrina de doces, ignorantes do sabor bem amargo de algumas pílulas coloridas.

Mas hoje deitar-me-ei ao lado dela, estoicamente fincarei o dentes na almofada, deixar-me-ei embalar pelo silêncio de gelo e dormirei o sono dos justos. Espero que pela manhã, a luz já a tenha por fim expulsado, a minha companheira, não gosta de Sol. Espero que chuva não dure sempre.




quarta-feira, 13 de março de 2013

As andorinhas de Rafael



Estas andorinhas em voo ascendente, a sua doce pequenez, terna fragilidade, a sua dualidade em branco preto, em duas faces que se namoram num voo elegante, a sua trajectória familiar, sempre de regresso, ou de partida, para Casa, uma qualquer terra que seja sua, onde mora a sua memória. Memória de pássaro,  cuja bússola segue o norte do seu coração. Pequenino, descompassado, efémero. 
Quantas vezes, quantos de nós, se detiveram numa janela, admirando o seu cuidado, a sua tenacidade sem quebranto. Quantos de nós desejava esta sazonalidade de sentidos, voar até onde quer que estivesse o calor, o nosso coração mais seguro, o nosso amor sob as nossas asas. Andorinhas de um anjo, em louça, em vidro que se parte, que se cola à parede, imitação de vida que se torna recordação das asas que queremos ter, para voar, mas sempre e sobretudo, para Voltar; a Casa, ao que é conhecido, ao que se ama, ao que é nosso...


domingo, 10 de março de 2013

Escolher o caminho mais longo

Caminhar, um impulso nervoso que viaja à boleia da luz, na vertigem electromagnética das estradas resplandescentes deste corpo. Músculos poderosos, largos como esta coxa enrijecida que projecta esta perna para a frente, este pé, que se prepara inexoravelmente para calcar a terra. E dar um passo, e outro, e a estrada se desmaia pé ante pé perante a sombra que nela se derrama. E nada parece tão simples. E nada é tão difícil como dar este passo, e outro, e continuar.

E vou e caminho, não sei se sou um corpo, se vivo, se sou cadáver em trânsito. Porque existe um embotamento que me permite viver para os outros e ser um nada para mim. Caminho e caminho, mas dentro de mim não vivo. 

Este é um regresso a casa pelo caminho mais longo. É conhecer a meta vagamente, é tentar que esta não se perca na poeira dos dias, é agarrar-se à Casa que deixámos há tanto e tanto tempo, mesmo que a sua lembrança seja já ténue e frágil. O maior dos medos é não se regressar a nada. É esquecer o que fomos, a vertigem de se ser o que se é, não importa o sofrimento que assim se experimenta, e se causa.






sábado, 2 de março de 2013

A arte de lutar

Perante a injustiça, a iniquidade, a indignidade, a corrupção, a incompetência grosseira, a arrogância, 
Todos abanam a cabeça, em raiva, em descrédito, em desaprovação,
Todos se zangam e esbracejam e vociferam e gritam.

Na hora de levantar, de cantar, de protestar, de lutar, 
Todos se ocupam de tudo e de um pouco,
Todos adoecem, adormecem e se esquecem.
Todos se cansam e se protegem.

Assim vai o livre arbítrio, ou a ignorância, ou a preguiça.
Mas não há esquecimento ou inadvertência, sem escolha.
E sem consequência.




quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Galgar todas as ondas: uma após a outra

Assim é a maneira do mundo, este palco expiatório de culpas primitivas, de inocências roubadas. 
Assim é a passagem do tempo, demasiado rápida para ser conhecida... O tempo, esse grande ilusionista.
Assim é a maneira do homem, indeciso quanto ao altar onde depositar a sua fé. 

Assim são estes os caminhos, desde o começo, desde a origem. Nada mudou e, no entanto, desespero numa ignorância das coisas do mundo, das coisas dos homens.

Assim é recomeçar e renascer: esvaziar-se das certezas; preencher-se de dúvidas. 
E nunca parar, persistir sempre, continuar, continuar, continuar.


terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Dois cães no lugar do coração

Dois cães negros no meu ser, ouço, na noite de corujas e pirilampos, os seus latidos ao longe, os seu choro triste, amordaçado. Dois seres em conflito, a sua força, membros que se contraem num ímpeto jovem e belo, pêlo luzidio quase azul, que se reflecte à face deste luar redondo, que me entra na janela. 

Dois cães negros, seu ventre vulnerável, de entranhas revolvidas, face à pobreza, à indignidade, à maldade por essas veredas disseminada, como uma doença, como um vírus, não vivo, apenas sedento de vida.

Dois cães negros no meu ser, nesta noite de silêncios, ouço o seu rugido de medo, antecipação nervosa pela luta. Duas forças que se digladiam, há muito em repouso, há muito em silêncio. Há beleza em seus corpos de guerreiros, há beleza na luta, porque há verdade, e a verdade será sempre bela. 

Dois cães negros puxando a sua corda, arriscando o seu pescoço. Não lutar é suicídio. Não lutar é morrer lentamente. Não lutar é mentir. 

Lutar é viajar, é deixar o seu animal livre, nem que seja só uma vez, é sentir-se vivo...vivo...vivo.


quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

A Casa, a mãe de todos

Uma casa, umas paredes dispostas num desenho geométrico, de todo imperfeito. Um bloco de pedra com buracos para respirar, para entrar, para abandonar, para olhar. Um móvel habilmente disposto, naquele canto inútil que, assim, é a jóia da coroa do quarto. Um canto cheio de coisas, artefactos brilhantes e outros pardacentos, recordações vivas e mortas, um passado doloroso, memórias ternas, momentos como pássaros que se foram, num voo de colibri. Uma cozinha, uma coxa de frango firme e rosa-pálido, apetitosa mas num processo de putrefacção que não se vê, apenas se pressente. Cheiros que se passeiam no sopro das correntes, de fora, da natureza límpida de uma casa da aldeia. Cheira a chuva, a terra molhada, a estrume vivificador. Uma cama quente, de abandono sedutor, de cambalhotas alegres e despreocupadas, de vergonhosos sorrisos e pequenos prazeres. Um espelho de odioso brilho em prata, impiedoso, voz que edifica, que arrasa. Poeiras dispostas em rebelde preguiça...cantos que nunca hão-de estar limpos, cristalizados nas molduras idiotas de tempos de mentira. Um gato, um vaso de folhas ansiosas por sol, aprisionadas numa casa de gente boa, de alguns fantasmas. Corredores de gritos e de choros, paredes caiadas, ressequidas de tantas manhãs, de sol, de mortes lambidas pela luz do dia, de ossos expostos numa queda aparatosa. Sombras de velhice, de decrépita solidão, despojos de uma juventude em trânsito, em fuga, de passagem para o momento prévio à loucura. Casa de palavras, esconderijos de silêncios, de lágrimas. A minha casa. A minha casa. A minha casa. Que saudades ainda antes de partir. A minha casa, de tantos, que se foram, que não voltaram. Eu vou, a casa permanece. Quanto de nós é a nossa casa...



domingo, 17 de fevereiro de 2013

Numa gaiola dourada

6 minutos e alguns segundos para reatar a minha relação adormecida, pelos lenitivos psiquiátricos e outros subterfúgios de felicidade, com as palavras. 6 minutos para escrever com verdade, sem tristezas, tacteando o véu de artificial estabilidade que criei há um mês em mim. 6 minutos para adiar um sono que, agora, vem tão naturalmente como o choro de uma criança com fome. 6 minutos para explicar como se me embota o pensamento nesta moratória de pílulas douradas que engulo como tábua de salvação, todos os dias, durante quanto tempo...não sei. Não sei, de facto, porque se me entaramela a voz, neste soluço de talento, antes fluido e terno, como uma segunda pele que se descolava sem dor ou esforço. Agora, é sofrível falar, viajar em mim, são passos ocos que se ouvem como um pássaro que esvoaça num segundo, é uma tépida chuva, que se eclipsa fugazmente no calor. Neste tempo de máscaras, olhar para dentro, é percorrer um denso corredor escuro sem formas: não me reconheço, não me vejo. Não dói, como não doem todas as coisas mortas ou adormecidas. Não dói, mas não sinto, não vivo. 

Já não sou visitada na noite por damas de reputação questionável...já não há insónias, já não há fantasmas... Mas não pensei que deixar o campo de batalha, seria deixar tanto de mim em despojos, dispostos à lenta cadência dos dias. Não sabia que baixar a espada significaria abandonar o escudo, a armadura, não ser mais soldado, mas antes outra classe de prisioneiro...


domingo, 3 de fevereiro de 2013

Renascimento

Desnudo-me de intimidades,
Lentamente tombando
as roupagens do vício
das vaidades e de outras mentiras.

Descubro-me de surpresas,
sem frios de alma,
Apenas um desejo me move,
libertar-me.

Um peito nu se revela,
brutalmente vulnerável,
indecentemente fraco,
para que nele esgravatem
abutres e outros monstros.
Que não restem miudezas,
poeiras e areias,
que não reste mais morte em mim.

Um novo começo,
Uma pele limpa,
Translúcida, permeável,
Sem cor, sem cheiro, sem nome.

A palidez da vida que não tomou o sol dos dias.
A aspereza da pedra que não sofreu o vento ou a água.
A alegria de nada conhecer, de nada possuir, de nada temer.
Ou de temer tudo e tudo se ir descobrindo.

Ah, o entusiasmo, a inocência
De viver.







sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

À prova de bala

Soou um tiro. Um bala que rasga com estrondo a brancura do dia. Um rastilho de faíscas se liberta, antecedendo com pompa, o ruído ensurdecedor do disparo. Tudo pára naquele momento: o olhar da vítima se detém: nem um pestanejo, nem um suspiro, nem uma gota de suor se derrama...nada se move, o tempo pára. E, no entanto, tudo muda como uma vaga gigante que se abate sobre a costa. De um momento de inércia, grandes mudanças se operam, e nada retornará ao princípio, se houve sequer um princípio.

Uma bala atingiu uma superfície de atrito. Penetrou a pele, escavou caminhos em tecidos antes intricadamente unos, estilhaçou ossos e, do impacto, uma explosão, que derivou em todos os sentidos. 

Um novo lugar no mundo se cria. A bala chegou ao seu destino e deixou um rasto de destroços. Ao longe, um ténue bater de um coração cansado, que bombeia em último fôlego, um sangue que se perde inexoravelmente,  por vasos corrompidos, gotejantes de vida que se esvai. Um lampejo de consciência atravessa atirador e vítima, miram-se, actores num filme exterior a si mesmos, num fio condutor de fim imprevisível. Um clarão de lucidez se ergue como um olhar de culpa, dois condenados que se despedem a da vida, tal como ela era. 

Assim é quando se destrói com palavras e com espadas tudo o que foi criado. Quando se dá um passo em falso, quando se passa o ponto do não de retorno. Quando se vê que a vida passou e foi e seguiu...e assim se falou, se feriu, se escolheu. E tudo mudou. Cabe-nos a todos a vez de disparar. Uns escolhem a vítima, outras vítimas se plantam com o peito a descoberto, desejando balas que silenciem a dor. Uns escolhem disparar em contranatura, serem eles mesmos a vítima e o atirador, num só. 

Mas todos nós, uma ou outra vez na vida, empunhamos armas, e disparamos, e carregamos balas... 
Porque todos os que amam são exímios atiradores e, ao mesmo tempo, perfeitas vítimas. 


quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Por vezes, o amor, ou o sonho dele

Por vezes, ah, por vezes,
passa um segredo na minha alma
sigo-o e é uma sombra.
E é um homem. Um príncipe que vive
dentro de mim. Quando ele passa,
um tapete de cristal se derrama sob
seus pés, passos que se ouvem
como notas da ópera mais bela.

Ele passa, e só eu ouço o bater
suave do seu coração, que é
música das esferas. Uma longa
capa carmesim aflora os meus dedos,
estreitam-se luzes de poder: um
deus passou aqui. Mas ninguém,
Ninguém vê, como tudo se curva
E ele passa e desliza e flutua.

Por vezes, ah, por vezes,
sonho que o vejo, e não vejo
apenas desejo. É um segredo
e é meu. Possuí-lo é secreta solidão,
é íntimo prazer. Possuí-lo é acreditar
em cascatas calmas. Em barcos com asas.
Em dias sem noites. Em amor sem erro.

Por vezes, ah, por vezes...


quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Rastilho e Pólvora

Existe um ruído de angústia de fundo no mundo. Mesmo no mais absoluto silêncio, sente-se um burburinho de impaciência, de intolerância, de descrença que a todos afecta. É como se tivéssemos atingido o ponto de ebulição, após anos de cozedura em lume brando. Atingiu-se o ponto crítico, de viragem ao abismo e já não é possível retroceder, já nada será como dantes. Até nas coisas mais pequenas se sente a mudança. 
Quando se vai ao supermercado e o preço das coisas aumenta, quando se paga uma conta e mais uma e mais a outra que vem mesmo no último dia do mês e, no derradeiro esforço, se usa o último tostão para pagá-la; quando se vai trabalhar e primeiro são 8 horas, depois são 10, depois são 14 e depois um naco de pão se atira ao chão para que os famintos se digladiem; quando os nossos filhos querem sonhar, querem um emprego, querem cuidar dos seus velhos um dia e toda a resposta é abrir as asas, cortar as raízes com violência e partir; quando a esperança nos morre lentamente, como um penso que se retira devagar e se sente os tecidos rasgar e descolar, camada a camada, pêlo a pêlo, nada mais se pode esperar que não uma revolta que brota violentamente sem qualquer controlo. Tudo é rastilho para esta pólvora que, insidiosa e firmemente, se acumulou no nosso ser. As vezes, começo a falar numa voz que é calma e conciliadora e, mal o abuso desponta, uma voz zangada e irascível irrompe. Quem é esta mulher, que não a reconheço... O que me aconteceu? Foi a dor, tempo, a sorte, a morte, ou foi algo mais? Foi a injustiça, a negação dos sonhos, o império da dívida, do dinheiro, que nos amarfanha a humanidade. Por isso, falo do recém-nascido que desejo, da restauração da inocência perdida e magoada. Como permanecer e atravessar incólume estas tempestades? Como conservar aquela parte humana e pura, crente e inocente que é o bem mais precioso em nós? Como se conserva a criança num mundo de adultos que já nascem velhos? 

Como, como, como, como?


domingo, 20 de janeiro de 2013

Impressão digital

A identidade de tudo o que nos rodeia é dependente do olhar externo. O que identifica a flor? A beleza que nos inspira com as suas formas altivas e serenas, com a suavidade inexpugnável do seu caule? A suas cores impossíveis e a harmonia milagrosa dos matizes das suas pétalas? Mas então, qual a identidade da flor na noite escura, em que não há cor nem formas? Qual a identidade da flor na nossa ausência?  Ou a sua existência cessa, quando não há ninguém que acredite que tal ser existe?

A identidade de cada ser deriva da imagem que o outro cria e que reflecte como um espelho? 

Ou, a identidade será uma linha de tempo, uma construção ordenada de acontecimentos que contam uma história, será a identidade uma narrativa de tempo e de escolhas? Então e tudo o foi preterido, esquecido e desprezado nesta narrativa, também não fará parte desta construção? 
Linhas interrompidas também são história. Ponto cegos também lançam luz no futuro obscuro.

Eu sou tudo o que de mim acreditam. Eu sou o que não escolhi, eu sou o tempo que se sucedeu e que parou e que se enrolou num nó cego de inércia. Eu sou tudo aquilo em que tomei parte, também sou o que neguei e esqueci. Sou as estradas resplandecentes que não percorri, sou a opção A e B e C e infinito. Sou um mar de gotas, de pequenas gotas. Sou tudo isto. E, no entanto, não sei o que sou. 

O olho que vê o universo é o olho do próprio universo. 
E há momentos de cegueira. E há vazios onde até o eco morreu. 

A identidade é uma coisa secreta e amorfa. E, no entanto, aquilo que não é não existe. E, por vezes, nesta busca incessante e dolorosa, expiro numa janela para ver se uma mancha baça se formou. Assim sei que estou viva e tenho uma identidade. Uma identidade que é um borrão de calor no frio de um vidro. 


quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

A Ameaça Fantasma

A ansiedade é como uma velha companheira que tem ímpetos de jovenzinha excitada na primeira noite de amor. Ela chega como um golpe profundo no peito, como um murro que nos tira o fôlego, como se em câmara lenta se partissem as costelas de fora para dentro, uma implosão no íntimo. As fundações tremem numa inércia insuportável deste prédio que não cai. Ah, a ansiedade, uma morte iminente que nunca chega. Morre-se num afogamento simulado, todas as vezes que esta velhinha companheira irrompe. Chega-se mesmo a sentir o frio cortante da água. É uma mão de gelo e de fogo que nos segura o coração e, eventualmente, o aperta suavemente em movimentos dolorosamente controlados. É uma agonia intensa, mais intensa porque se vive por dentro. Quem nunca se sentiu morrer quando, paradoxalmente, nunca se esteve tão vívido de medo, não sabe o que é ansiedade.

O poeta dizia que era ferida que dói e não se sente, um fogo que arde e não se vê. Todos pensam no amor, eu penso na ansiedade, numa espécie de dor mesquinha, que nem se permite sentir.

Às vezes, quando olho o mar em dias de nevoeiro, numa calmaria de águas inescrutáveis e de céu cinzento, e sopra um vento fétido de mudança e desgraça, sinto a natureza mimetizar a minha ansiedade. É assim que eu sou quando estou ansiosa. Não se vê, pressente-se. E morre-se em ansiedade por isso.

Quando finalmente a tempestade emerge, e esta velhinha insidiosa se mostra, é num gorgolejo de moribundo. A ansiedade libertada é um novelo de vergonha e de nudez que se expõe ao mundo. Não é cura; é alívio. 

A resposta para este caos contido é uma nova ordem das coisas. Uma linha ininterrupta e saudável de pensamentos. A vida tem de ser uma lista ordenada e limpa de coisas, até que se recupere o controlo.


segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

From the twilight: A noiva

Uma tristeza antiga como uma sequóia  Abraço-a, sinto os seus anéis colidindo no seu interior, 2000 anos de matéria que cresceu lentamente, numa espessura de fio de cabelo que se acrescenta num ano, e que por milagre se vai formando forte e inabalável. Há um conforto nas coisas conhecidas, mesmo que tristes, mesmo que amargas. Há uma terna constância num movimento que se perpetua, na ausência da mudança. É mais fácil ser sequóia do que ser orquídea. É mais fácil ser triste do que ser feliz. 

É como a sedução elegante de uma noiva tímida, que não se dá ao primeiro aceno do noivo. 
É como um flor que desabrocha tarde, esperando o luar perfeito. 

Há nestas coisas um risco, o risco estéril de não o serem: nem a noiva de ser noiva, nem a flor de ser flor.

Há um casamento que não acontece, há uma primavera que não vem. E os desejos que são novos desvanecem-se como um perfume num dia de vento.

É este o restolho da soma dos dias. Uma soma de dias, que não perfaz uma vida.

Um crepúsculo de esperanças que precede um longo e doloroso anoitecer. 
Ainda o dia não nasceu em esperança. Ainda não.



domingo, 6 de janeiro de 2013

From the dark: Mr Tambourine Man

AVISO: Há coisas, lugares e sentires, que não devem ser postos no mundo. Às vezes são demasiado pungentes, envolvem vergonhas ou escândalos mas, na maior parte das vezes, são apenas demasiado dolorosos para serem partilhados. Não obstante tudo isto, há uma emergente necessidade de os libertar de alguma forma, a catarse é a única maneira mais ou menos sã de nos tornarmos livres, nem que seja por breves momentos. É possível que preocupe uns, que choque outros. Mas o importante é que, agora, me é permitido respirar outra vez. Demónios soltos, fantasmas exorcizados. É para isto que também servem as palavras.

O Homem do Tamborim

Lá vem ele, o homem do chapéu preto.
Ele que tem o rosto encerado,
Metade uma máscara que não se vê,
Apenas se pressente, como um anúncio de morte.

Os seus passos se sucedem em becos escuros, e
Na penumbra, se ouvem hordas de corvos
Que se levantam num frenesim de despojos.
Eu sei que ele vem aí, dentro de mim
A noite escura chama-o. Hoje, desnudei
O meu peito descarnado à luz da manhã
e o sol lambeu as minha feridas,
numa condescendência insuportável.

Eu já não sou eu, a que se desnuda
Sou uma pálida sombra do que fui
E este peito descarnado, está para 
Além da cura.

Ele vem aí, o homem da corneta,
da meia beata na boca, do fumo
Que se eleva num bafo ameaçador,
Num movimento de desafio.

Ele vem aí, com a aba do chapéu
Suja e engordurada, E tudo nele
É morte e putrefacção.

Ele vem aí tocando o aviso de batalha,
E já nada em mim tem o ímpeto da luta.

A batalha começa. Eu já bato em retirada.
Ouço a corneta da morte e, quase docemente,
Espero cair nos seus braços.

Perdão, de um lugar muito escuro escrevo,
E sonho e sinto e espero.