terça-feira, 26 de março de 2013

Ser rei de si mesmo, ou ser ovelha no redil

Sempre me pareceu terrível o abdicar da liberdade individual, sempre me pareceram impossíveis os longos invernos de ditadura a que tantos foram subjugados. Mas mais impossível ainda, sempre me pareceu a vontade consciente com que muitos se entregam as estes regimes, os seus desejos de rendição e de alienação a um projeto individual, a forma fácil como estas ovelhas se mesclam num qualquer rebanho que  cegamente lhes garanta pasto e tranquilidade.

Qual o conforto na renúncia ao exercício mais sublime da humanidade, a sua livre escolha?

Ocorreu-me, como um relâmpago por demais por si evidente, que a liberdade é nudez absoluta, é ser rei de um Eu caprichoso, de um reino longo e pouco pacificado, uma terra onde breve é a alegria, muitas são as dúvidas e profunda é a solidão.

É mais fácil ser ovelha em rebanho, mesmo que loucuras e mortes aconteçam nas pastagens. Negar-se o privilégio de escolher, evitando-se assim a culpa, contando a si mesmo insanas narrativas de se ser herói coletivo, em campanhas absurdas, sem heróis nem vítimas, apenas destruição.

Ser rei de si mesmo, assumir cada decreto louco deste eu, assim livre para errar, para agrilhoar a si mesmo e a outros em longa agonia. É um salto no abismo, é incomensuravelmente mais difícil.
Mas é também ter o poder de se ser tão verdadeiro como possível, ser-se inteiro, sem medidas, sem fronteiras. E, num golpe de sorte divina, ser-se amado por isso mesmo, e por alguém igualmente livre.

Não entendo a sedução pastoril da ovelha. Mas vejo a sua segurança, a sua quietude.
Mas isto não é ser humano. É servil animalidade.





sexta-feira, 22 de março de 2013

Estar triste é ser natural

Nos dias de hoje, toda a tristeza é mal-vista. Estar triste é facto de tal forma pernicioso, que todos se excedem nos expedientes para exterminá-la, amarfanhá-la, abortá-la mal desponta em caras fechadas, sorrisos amarelos ou lágrimas copiosas. Ora, estar triste é, muitas vezes, tão natural como a dor na pele se acaso nos picamos na rosa, tão certo como o eriçar dos pêlos num dia de frio, e deve ser deixado livre para se derramar, até não mais haver ímpeto na sua fonte, nem caudal que o alimente. 

Não se prescreve um qualquer lenitivo ou remédio ou xarope para a tristeza. O próprio remédio é mesmo vivê-la. Permitir-se respirar em tristeza é a salutar medida do se sentir vivo. Estar triste não é perder esperança. Estar triste é dar-se ao corpo e à alma, tempo e espaço, para se ir tacteando aos bocadinhos, fenda a fenda, golpe a golpe, ferida a ferida, e gentil e serenamente, encurtar abismos, suturar golpes, encerrar feridas.

Não há soluções mágicas para a tristeza. A própria solução é já raiz do problema. Tempo e paciência é o que nos cura.


domingo, 17 de março de 2013

A máquina e o sonho

Todos temos duas vidas. A primeira, a que sonhamos na infância e acalentamos, como pequeno tesouro, durante toda a vida adulta. A minha primeira vida também tem grandes desertos como os de agora, mas outrora, estendiam-se sob grandiosos céus de noites repletas de estrelas e detrás de cada pedra ou duna, um insecto perscrutando a noite, sob pequenas patas que num passe de mágica eram asas, e levantavam voo. Nesta primeira vida, há sempre risos e, mesmo quando há lágrimas, são de conquista, são de vida, porque nesta vida original nunca se morre. Nesta vida, todos são altos e eu sou adoravelmente pequena e todos me protegem. Às vezes, ponho-me de bicos de pés e lidero exércitos a fingir, com baluartes brancos de flores amarelas, e saio sempre vitoriosa. Não há prisões de ciúme ou de soberba. Há amor sem pensamento, e isso é liberdade. Esta é a vida verdadeira, a que espero regressar.

A segunda vida é falsa e prática e útil. É funcional, como são todas as máquinas que produzem. Esta é a vida em que morro, em que estou presa, em que penso. E tudo é grande e deserto, como são grandes estas pedras que engulo. Não há maravilhas pequenas, não há conquistas limpas.

Pela voz de Álvaro de Campos,

Na outra somos nós,
Na outra vivemos;
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer;
Neste momento, pela náusea, vivo na outra...



sexta-feira, 15 de março de 2013

A companheira mais fiel

Ontem deitei-me ao lado dela, o seu corpo frio a derramar-se junto ao meu, uma frieza que enregela os ossos e imobiliza o coração, que bate como agulhas de gelo num relógio de metal frio. Ela, a minha companheira, sempre e ad aeternum fiel, a que não é humana, antes sombra, antes impressão amorfa nos lençóis. Ela é leal, como um cão negro cujo uivar é certo a cada promontório, na noite escura, sob uma lua branca e cheia. Ontem deitei-me pensando que ela poderia não estar; o dia empurrou-me para outros parceiros bem mais sedutores: as palavras, os sorrisos, a perspectiva de uma luz intensa numa porta semiaberta, que empurrei com cautela. Por momentos fui feliz, como o são todas as crianças frente a uma vitrina de doces, ignorantes do sabor bem amargo de algumas pílulas coloridas.

Mas hoje deitar-me-ei ao lado dela, estoicamente fincarei o dentes na almofada, deixar-me-ei embalar pelo silêncio de gelo e dormirei o sono dos justos. Espero que pela manhã, a luz já a tenha por fim expulsado, a minha companheira, não gosta de Sol. Espero que chuva não dure sempre.




quarta-feira, 13 de março de 2013

As andorinhas de Rafael



Estas andorinhas em voo ascendente, a sua doce pequenez, terna fragilidade, a sua dualidade em branco preto, em duas faces que se namoram num voo elegante, a sua trajectória familiar, sempre de regresso, ou de partida, para Casa, uma qualquer terra que seja sua, onde mora a sua memória. Memória de pássaro,  cuja bússola segue o norte do seu coração. Pequenino, descompassado, efémero. 
Quantas vezes, quantos de nós, se detiveram numa janela, admirando o seu cuidado, a sua tenacidade sem quebranto. Quantos de nós desejava esta sazonalidade de sentidos, voar até onde quer que estivesse o calor, o nosso coração mais seguro, o nosso amor sob as nossas asas. Andorinhas de um anjo, em louça, em vidro que se parte, que se cola à parede, imitação de vida que se torna recordação das asas que queremos ter, para voar, mas sempre e sobretudo, para Voltar; a Casa, ao que é conhecido, ao que se ama, ao que é nosso...


domingo, 10 de março de 2013

Escolher o caminho mais longo

Caminhar, um impulso nervoso que viaja à boleia da luz, na vertigem electromagnética das estradas resplandescentes deste corpo. Músculos poderosos, largos como esta coxa enrijecida que projecta esta perna para a frente, este pé, que se prepara inexoravelmente para calcar a terra. E dar um passo, e outro, e a estrada se desmaia pé ante pé perante a sombra que nela se derrama. E nada parece tão simples. E nada é tão difícil como dar este passo, e outro, e continuar.

E vou e caminho, não sei se sou um corpo, se vivo, se sou cadáver em trânsito. Porque existe um embotamento que me permite viver para os outros e ser um nada para mim. Caminho e caminho, mas dentro de mim não vivo. 

Este é um regresso a casa pelo caminho mais longo. É conhecer a meta vagamente, é tentar que esta não se perca na poeira dos dias, é agarrar-se à Casa que deixámos há tanto e tanto tempo, mesmo que a sua lembrança seja já ténue e frágil. O maior dos medos é não se regressar a nada. É esquecer o que fomos, a vertigem de se ser o que se é, não importa o sofrimento que assim se experimenta, e se causa.






sábado, 2 de março de 2013

A arte de lutar

Perante a injustiça, a iniquidade, a indignidade, a corrupção, a incompetência grosseira, a arrogância, 
Todos abanam a cabeça, em raiva, em descrédito, em desaprovação,
Todos se zangam e esbracejam e vociferam e gritam.

Na hora de levantar, de cantar, de protestar, de lutar, 
Todos se ocupam de tudo e de um pouco,
Todos adoecem, adormecem e se esquecem.
Todos se cansam e se protegem.

Assim vai o livre arbítrio, ou a ignorância, ou a preguiça.
Mas não há esquecimento ou inadvertência, sem escolha.
E sem consequência.