sexta-feira, 30 de agosto de 2013

A chegada dos pássaros e a transmutação

Eles chegam, num trinado ininterrupto, numa alegria que assim o é porque é simplesmente, sem casca, sem abrigo, sem subterfúgios. Nos pássaros e nas coisas da natureza, o que se vê está por dentro, aquilo que é e o que o anima é o próprio corpo. Há uma verdade intransponível  na mudança das coisas exteriores a nós. Não há processamento do ser; há apenas ser. É por isso que, por vezes, entre o sossego e o arvoredo, entre o que é secreto e o que é conhecido, entre o tempo e a vontade, há momentos em que expomos o rosto à luz, em que nos calamos num silêncio de fundo, em que nos esvaziamos de tudo. Um momento que o vento fustiga o rosto, e o cabelo se entrecruza em loucos fios de luz. É nesse momento que se desliga o fio de pensamento. Em que o mundo se nos meteu dentro, o mesmo vento de fora é o mesmo que agita este coração suspenso e a água que se enrola em ondas de tempestade é a mesma que percorre as veias e se transpira em gotas sobre a pele. Às vezes pensei que seria impossível evadir-me com um outro. Como se ter o corpo dado aos dias e ao mundo, fosse um fenómeno de íntima e solitária entrega. Não pensei que poderia um dia ser aquilo que me anima, sem palavras ou outras falácias de ocasião, ser o que sou e ser o me alegra: a chegada dos pássaros, a transmutação do mundo. Ser o que vejo, entregar-me a este vento e pegar a tua mão, diluir-nos os dois em líquido, em verdade e em sentimento. E regressar, com a recordação do que é verdadeiro tatuado na alma. 

Este é o verdadeiro caminho de sabedoria.


segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Há dias que são filosofias

É tarde no dia, mas cedo para nos descobrirmos aos dois, de mansinho, como se desvendam as coisas secretas, de amor e de sombra. É tarde e o sol se desmaia sobre o mar, lambe-nos a pele quente e sequiosa, como uma segunda pele de luz. É cedo para nos despedirmos, os corpos permanecem numa avidez que se desenrola devagar, como um prazer que se parte e reparte e se prolonga deliciosamente no tempo. Entardece, e como um suspiro sai a tristeza como a última cor abandona os ossos. É uma evocação feliz, é um regresso a casa, ao útero materno. E cedo se instala a noite e o derradeiro pôr de sol se eclipsa perante o nosso olhar que o persegue. É tarde para gravarmos estas últimas cores na memória, há tempo apenas para mete-lo dentro de nós como se aprende as coisas naturais, de respirar e de dormir.
É tardia esta saudade, é cedo ainda e a languidez dos segundos cola-se à alma como uma memória íntima, quase primitiva. Nem é tarde, nem é cedo. Estes são os minutos sem tempo, a eternidade em segundos que se desfazem como que tombando, em tatuagens de tinta indecifrável. Dentro de nós, um tempo imenso nos abriga do entardecer das coisas, este sentir não tem idade.