quinta-feira, 21 de junho de 2012

A tristeza é politicamente incorrecta

Uma paisagem lunar. À volta, tudo é cinzento e branco e negro a envolver tudo. Um ermo é tudo o que resta depois das festas, fragmentos de risos e trambolhões e gotas de chuva que irromperam tímidas na luz parda e dourada. Saudade é uma amputação, é subistir com dor fantasma, cheia de espectros de tudo o que foi e já não é. Tudo o que devia ser e, afinal, não foi.



segunda-feira, 18 de junho de 2012

Fome e sede na era da abundância

Temos hoje uma fome visceral de algo indefinível, a íntima certeza de que há algo em falta. Falta deus na equação, falta o divino, o privilégio do inexplicável, a alegria infantil da maravilha. Temos fome e sede de um recém nascido limpo e imaculado, que inaugure um mundo novo, cheio de promessas. Temos ânsias de um de crer sem reservas, de milagres com arbustos que não queimam e de finais felizes...

E é por isto que corremos como morcegos cegos, ávidos de sangue e calor, de vida em vertigem.
É por isto que somos borboletas nocturnas sôfregas por luz, que voam incertas e desastradas, gravitando trôpegas em torno de uma sombra ténue.

Somos adultos sérios e compenetrados, chorando pelas crianças que matámos no caminho.

Por isto celebramos com pompa e mentira cada fogo-fátuo, cada sinal de fumo ou rumor de nascente.
Por isto juramos ouvir zebras e tudo o que chega são mulas cinzentas e cansadas.
Por isto corremos maratonas, trémulos e incrédulos, pesando cada passo com uma confiança de fachada.
Por isto nos lançamos no lago, mesmo quando não vemos o fundo.

Por tudo isto, temos fome e sede, e vivemos num deserto, e ao virar da esquina está um oceano.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

A morte do rio é o começo do mar

Começar no fim é caminho de sabedoria: Começar recolhendo fragmentos e de mãos vazias, é desbravar com medo mas sem hesitações. No fim, não há esperanças, nem forças, nem pensamentos; há apenas instinto, o impulso mais primitivo e poderoso que existe. O impulso primordial de avançar, de perseverar de sobrevir. Porque a vida tem um fluxo independente de todo desígnio consciente. A vida impõe-se, derrama-se mesmo quando a área de manobra é infinitamente pequena. A vida é imparável, mesmo quando estamos em morte consciente. É no fim que esta vida se revela em todo o seu esplendor: é força pura, mansa ou revoltosa. Quando o pensamento adormece, o coração cristaliza, o corpo mirra e é massa inerte que pulsa sem ânimo, a vida acontece. É no fim que recomeçamos; é no fim que podemos recriar. Prefiro este fim a uma vida remendada, a viver com xarope em suspensão, tomado aos soluços, lenitivo entorpecedor, repugnante, um asco de si mesmo, um tédio de si. Venha ele, o fim. Estou preparada.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Um rio subterrâneo

Um rio subterrâneo voluntaria-se em mim. Navega nas escarpas, ganha corpo e membros, mas nunca aflora a superfície. Meu rio é caprichoso: tem pedras e ilhotas de areia e juncos, quiçá movediças; tem pepitas de ouro e muitos anos de garimpo se passaram e a febre do ouro esgotou partes deste leito e, aqui, nada brilha ao olho nu. Dantes, há muito tempo, tinha rápidos e cascatas, a impetuosidade revolvia o solo e plantas e pequenos crustácios flutuavam felizes: a abundância alimentava pequenos mas eram muitos os saciados. Meu rio tinha água fresca e pura, água que lavava, não gelava, nesta água, muitas coisas o foram e o eram e o são, porque os tempos se misturavam: nada resistia ao seu fluxo vigoroso e sim, eu era eterna. Agora, meu rio morre e move-se num sussurro. Minha água gela e queima, vive ao sabor das contantes de superfície, ele, o rio, que é subterrâneo. A ironia é impiedosa.