quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Galgar todas as ondas: uma após a outra

Assim é a maneira do mundo, este palco expiatório de culpas primitivas, de inocências roubadas. 
Assim é a passagem do tempo, demasiado rápida para ser conhecida... O tempo, esse grande ilusionista.
Assim é a maneira do homem, indeciso quanto ao altar onde depositar a sua fé. 

Assim são estes os caminhos, desde o começo, desde a origem. Nada mudou e, no entanto, desespero numa ignorância das coisas do mundo, das coisas dos homens.

Assim é recomeçar e renascer: esvaziar-se das certezas; preencher-se de dúvidas. 
E nunca parar, persistir sempre, continuar, continuar, continuar.


terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Dois cães no lugar do coração

Dois cães negros no meu ser, ouço, na noite de corujas e pirilampos, os seus latidos ao longe, os seu choro triste, amordaçado. Dois seres em conflito, a sua força, membros que se contraem num ímpeto jovem e belo, pêlo luzidio quase azul, que se reflecte à face deste luar redondo, que me entra na janela. 

Dois cães negros, seu ventre vulnerável, de entranhas revolvidas, face à pobreza, à indignidade, à maldade por essas veredas disseminada, como uma doença, como um vírus, não vivo, apenas sedento de vida.

Dois cães negros no meu ser, nesta noite de silêncios, ouço o seu rugido de medo, antecipação nervosa pela luta. Duas forças que se digladiam, há muito em repouso, há muito em silêncio. Há beleza em seus corpos de guerreiros, há beleza na luta, porque há verdade, e a verdade será sempre bela. 

Dois cães negros puxando a sua corda, arriscando o seu pescoço. Não lutar é suicídio. Não lutar é morrer lentamente. Não lutar é mentir. 

Lutar é viajar, é deixar o seu animal livre, nem que seja só uma vez, é sentir-se vivo...vivo...vivo.


quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

A Casa, a mãe de todos

Uma casa, umas paredes dispostas num desenho geométrico, de todo imperfeito. Um bloco de pedra com buracos para respirar, para entrar, para abandonar, para olhar. Um móvel habilmente disposto, naquele canto inútil que, assim, é a jóia da coroa do quarto. Um canto cheio de coisas, artefactos brilhantes e outros pardacentos, recordações vivas e mortas, um passado doloroso, memórias ternas, momentos como pássaros que se foram, num voo de colibri. Uma cozinha, uma coxa de frango firme e rosa-pálido, apetitosa mas num processo de putrefacção que não se vê, apenas se pressente. Cheiros que se passeiam no sopro das correntes, de fora, da natureza límpida de uma casa da aldeia. Cheira a chuva, a terra molhada, a estrume vivificador. Uma cama quente, de abandono sedutor, de cambalhotas alegres e despreocupadas, de vergonhosos sorrisos e pequenos prazeres. Um espelho de odioso brilho em prata, impiedoso, voz que edifica, que arrasa. Poeiras dispostas em rebelde preguiça...cantos que nunca hão-de estar limpos, cristalizados nas molduras idiotas de tempos de mentira. Um gato, um vaso de folhas ansiosas por sol, aprisionadas numa casa de gente boa, de alguns fantasmas. Corredores de gritos e de choros, paredes caiadas, ressequidas de tantas manhãs, de sol, de mortes lambidas pela luz do dia, de ossos expostos numa queda aparatosa. Sombras de velhice, de decrépita solidão, despojos de uma juventude em trânsito, em fuga, de passagem para o momento prévio à loucura. Casa de palavras, esconderijos de silêncios, de lágrimas. A minha casa. A minha casa. A minha casa. Que saudades ainda antes de partir. A minha casa, de tantos, que se foram, que não voltaram. Eu vou, a casa permanece. Quanto de nós é a nossa casa...



domingo, 17 de fevereiro de 2013

Numa gaiola dourada

6 minutos e alguns segundos para reatar a minha relação adormecida, pelos lenitivos psiquiátricos e outros subterfúgios de felicidade, com as palavras. 6 minutos para escrever com verdade, sem tristezas, tacteando o véu de artificial estabilidade que criei há um mês em mim. 6 minutos para adiar um sono que, agora, vem tão naturalmente como o choro de uma criança com fome. 6 minutos para explicar como se me embota o pensamento nesta moratória de pílulas douradas que engulo como tábua de salvação, todos os dias, durante quanto tempo...não sei. Não sei, de facto, porque se me entaramela a voz, neste soluço de talento, antes fluido e terno, como uma segunda pele que se descolava sem dor ou esforço. Agora, é sofrível falar, viajar em mim, são passos ocos que se ouvem como um pássaro que esvoaça num segundo, é uma tépida chuva, que se eclipsa fugazmente no calor. Neste tempo de máscaras, olhar para dentro, é percorrer um denso corredor escuro sem formas: não me reconheço, não me vejo. Não dói, como não doem todas as coisas mortas ou adormecidas. Não dói, mas não sinto, não vivo. 

Já não sou visitada na noite por damas de reputação questionável...já não há insónias, já não há fantasmas... Mas não pensei que deixar o campo de batalha, seria deixar tanto de mim em despojos, dispostos à lenta cadência dos dias. Não sabia que baixar a espada significaria abandonar o escudo, a armadura, não ser mais soldado, mas antes outra classe de prisioneiro...


domingo, 3 de fevereiro de 2013

Renascimento

Desnudo-me de intimidades,
Lentamente tombando
as roupagens do vício
das vaidades e de outras mentiras.

Descubro-me de surpresas,
sem frios de alma,
Apenas um desejo me move,
libertar-me.

Um peito nu se revela,
brutalmente vulnerável,
indecentemente fraco,
para que nele esgravatem
abutres e outros monstros.
Que não restem miudezas,
poeiras e areias,
que não reste mais morte em mim.

Um novo começo,
Uma pele limpa,
Translúcida, permeável,
Sem cor, sem cheiro, sem nome.

A palidez da vida que não tomou o sol dos dias.
A aspereza da pedra que não sofreu o vento ou a água.
A alegria de nada conhecer, de nada possuir, de nada temer.
Ou de temer tudo e tudo se ir descobrindo.

Ah, o entusiasmo, a inocência
De viver.







sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

À prova de bala

Soou um tiro. Um bala que rasga com estrondo a brancura do dia. Um rastilho de faíscas se liberta, antecedendo com pompa, o ruído ensurdecedor do disparo. Tudo pára naquele momento: o olhar da vítima se detém: nem um pestanejo, nem um suspiro, nem uma gota de suor se derrama...nada se move, o tempo pára. E, no entanto, tudo muda como uma vaga gigante que se abate sobre a costa. De um momento de inércia, grandes mudanças se operam, e nada retornará ao princípio, se houve sequer um princípio.

Uma bala atingiu uma superfície de atrito. Penetrou a pele, escavou caminhos em tecidos antes intricadamente unos, estilhaçou ossos e, do impacto, uma explosão, que derivou em todos os sentidos. 

Um novo lugar no mundo se cria. A bala chegou ao seu destino e deixou um rasto de destroços. Ao longe, um ténue bater de um coração cansado, que bombeia em último fôlego, um sangue que se perde inexoravelmente,  por vasos corrompidos, gotejantes de vida que se esvai. Um lampejo de consciência atravessa atirador e vítima, miram-se, actores num filme exterior a si mesmos, num fio condutor de fim imprevisível. Um clarão de lucidez se ergue como um olhar de culpa, dois condenados que se despedem a da vida, tal como ela era. 

Assim é quando se destrói com palavras e com espadas tudo o que foi criado. Quando se dá um passo em falso, quando se passa o ponto do não de retorno. Quando se vê que a vida passou e foi e seguiu...e assim se falou, se feriu, se escolheu. E tudo mudou. Cabe-nos a todos a vez de disparar. Uns escolhem a vítima, outras vítimas se plantam com o peito a descoberto, desejando balas que silenciem a dor. Uns escolhem disparar em contranatura, serem eles mesmos a vítima e o atirador, num só. 

Mas todos nós, uma ou outra vez na vida, empunhamos armas, e disparamos, e carregamos balas... 
Porque todos os que amam são exímios atiradores e, ao mesmo tempo, perfeitas vítimas.