terça-feira, 30 de abril de 2013

São gigantes debaixo da poeira dos dias

Fim de Abril.

Frio intenso, que de lúgubre se veste pela manhã e de tristeza se cobre ao entardecer, para dormir.
Frio que mumifica os ossos, ressequidos, por uma sede qualquer.
Nunca saciada, lábios que se colam entre si, entreabrem-se em lascas de pele densa, como asas de moscas que jazem inertes no papel de uma criança; onde desenha, numa aparente ingenuidade, carros e flores e casas e sorrisos, com amarelos e vermelhos enfatuados.

Pele que se desprega sem suor, rugas que se traçam como sulcos impossíveis, um rio que há milhões de anos se insinuou na montanha.
Um cansaço velho como o mundo, que tomba os joelhos como banha que se derrete ao fogo brando e subjuga os ombros num ângulo de doloroso abandono.

Há uma eterna despedida em seus passos, como se cada avanço fosse uma canção, que baixinho entoa adeus, adeus, adeus...extenuantes sussurros, incessantes, ciciam a eternidade.

É um velho dizem alguns. Eu vejo, e digo, é um jovem. É um jovem de hoje que ontem nasceu velho.

Tudo tem o odor do que é antigo, ou pior, do que já não tem serventia, que é como ser velho antes do tempo. São pessoas e são coisas vazias num sótão de cartão. E tudo está recoberto com poeiras de mal-entendidos e de ressentimentos.

É preciso um pelotão de fuzilamento. É preciso morte violenta para se começar limpo.
É preciso deixar a velhice do tempo, do espaço e das coisas esquecidas e voltar a nascer.


segunda-feira, 15 de abril de 2013

A derradeira liberdade

The sea's only gifts are harsh blows, and occasionally the chance to feel strong. Now I don't know much about the sea, but I do know that that's the way it is here. And I also know how important it is in life not necessarily to be strong but to feel strong. To measure yourself at least once. To find yourself at least once in the most ancient of human conditions. Facing the blind death stone alone, with nothing to help you but your hands and your own head.

Christopher MacCandless in Into The Wild

Vejo-a alta, um vulto branco
perante um mar azul, encrespado
de espuma e de raiva.

Vejo-a vacilante, mas enraizada
um abandono que ali a plantou
um desespero que ali a congelou
Lá, naquelas rochas frias de 
negras areias, de seixos redondos.

Vejo-a líquida, como barro que 
se desmancha e se molda,
numa transparência impossível
como água que cursa sincera,
mas inescrutável.

Vejo-a toda, e está nua.
Aquilo que a anima 
está à superfície.

E é uma rosa pequena,
que sobreviveu ao Inverno
e agoniza na Primavera.

Vejo-a e quero falar-lhe.
Quero que pare e se volte.
Para o que era, o que foi,
Para a vida que a espera.
Mas detenho-me, imóvel.

Vejo-a, e sinto a sua agonia.
Mas quero que escolha.
Quero-a livre e viva.

Vejo-a e é uma mulher.
Olho-a e é o medo.
Encontro-a e é a coragem.

Vejo-a e passei à frente.
E é a liberdade.


terça-feira, 2 de abril de 2013

Amor: a inevitabilidade cósmica.

Saibam que, desde que eram pó
Das estrelas, viajando à velocidade da luz
De esferas de ventre quente, de buracos
Negros, sem som de anjos, com fulgor virgem
Da vida a começar, já eram amados.

Saibam que, desde que a vida é matéria
Em vós, no nosso corpo, o amor já
Se inscreveu, desde sempre,
Para sempre, para além e
Aquém da vontade própria,
Ou alheia. Somos amados e,
Nascendo já em débito, somos
Sedentos de amar e deste amor.

Um amor que não é paixão.
É constância, como o tempo
A dor, a morte e a sorte.
É o amor sereno, é a paz
De se querer o bem e de se desejar,
Sem urgência, o bem.

Um amor que é liberdade,
Um ser livre que escolhe
e se aprisiona, porque assim é
a perfeição de todas as coisas.

Saibam que são amados, mesmo que
não se sintam merecedores. Porque
a criatura é aparelho divino para
Amar. E ser amado, desde sempre.

Crer nisto é difícil.
É crer que também as mariposas
Mesmo no escuro, tontas de sede
E de luz, feias e despidas, são
Dignas deste Amor.