quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Por vezes, o amor, ou o sonho dele

Por vezes, ah, por vezes,
passa um segredo na minha alma
sigo-o e é uma sombra.
E é um homem. Um príncipe que vive
dentro de mim. Quando ele passa,
um tapete de cristal se derrama sob
seus pés, passos que se ouvem
como notas da ópera mais bela.

Ele passa, e só eu ouço o bater
suave do seu coração, que é
música das esferas. Uma longa
capa carmesim aflora os meus dedos,
estreitam-se luzes de poder: um
deus passou aqui. Mas ninguém,
Ninguém vê, como tudo se curva
E ele passa e desliza e flutua.

Por vezes, ah, por vezes,
sonho que o vejo, e não vejo
apenas desejo. É um segredo
e é meu. Possuí-lo é secreta solidão,
é íntimo prazer. Possuí-lo é acreditar
em cascatas calmas. Em barcos com asas.
Em dias sem noites. Em amor sem erro.

Por vezes, ah, por vezes...


quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Rastilho e Pólvora

Existe um ruído de angústia de fundo no mundo. Mesmo no mais absoluto silêncio, sente-se um burburinho de impaciência, de intolerância, de descrença que a todos afecta. É como se tivéssemos atingido o ponto de ebulição, após anos de cozedura em lume brando. Atingiu-se o ponto crítico, de viragem ao abismo e já não é possível retroceder, já nada será como dantes. Até nas coisas mais pequenas se sente a mudança. 
Quando se vai ao supermercado e o preço das coisas aumenta, quando se paga uma conta e mais uma e mais a outra que vem mesmo no último dia do mês e, no derradeiro esforço, se usa o último tostão para pagá-la; quando se vai trabalhar e primeiro são 8 horas, depois são 10, depois são 14 e depois um naco de pão se atira ao chão para que os famintos se digladiem; quando os nossos filhos querem sonhar, querem um emprego, querem cuidar dos seus velhos um dia e toda a resposta é abrir as asas, cortar as raízes com violência e partir; quando a esperança nos morre lentamente, como um penso que se retira devagar e se sente os tecidos rasgar e descolar, camada a camada, pêlo a pêlo, nada mais se pode esperar que não uma revolta que brota violentamente sem qualquer controlo. Tudo é rastilho para esta pólvora que, insidiosa e firmemente, se acumulou no nosso ser. As vezes, começo a falar numa voz que é calma e conciliadora e, mal o abuso desponta, uma voz zangada e irascível irrompe. Quem é esta mulher, que não a reconheço... O que me aconteceu? Foi a dor, tempo, a sorte, a morte, ou foi algo mais? Foi a injustiça, a negação dos sonhos, o império da dívida, do dinheiro, que nos amarfanha a humanidade. Por isso, falo do recém-nascido que desejo, da restauração da inocência perdida e magoada. Como permanecer e atravessar incólume estas tempestades? Como conservar aquela parte humana e pura, crente e inocente que é o bem mais precioso em nós? Como se conserva a criança num mundo de adultos que já nascem velhos? 

Como, como, como, como?


domingo, 20 de janeiro de 2013

Impressão digital

A identidade de tudo o que nos rodeia é dependente do olhar externo. O que identifica a flor? A beleza que nos inspira com as suas formas altivas e serenas, com a suavidade inexpugnável do seu caule? A suas cores impossíveis e a harmonia milagrosa dos matizes das suas pétalas? Mas então, qual a identidade da flor na noite escura, em que não há cor nem formas? Qual a identidade da flor na nossa ausência?  Ou a sua existência cessa, quando não há ninguém que acredite que tal ser existe?

A identidade de cada ser deriva da imagem que o outro cria e que reflecte como um espelho? 

Ou, a identidade será uma linha de tempo, uma construção ordenada de acontecimentos que contam uma história, será a identidade uma narrativa de tempo e de escolhas? Então e tudo o foi preterido, esquecido e desprezado nesta narrativa, também não fará parte desta construção? 
Linhas interrompidas também são história. Ponto cegos também lançam luz no futuro obscuro.

Eu sou tudo o que de mim acreditam. Eu sou o que não escolhi, eu sou o tempo que se sucedeu e que parou e que se enrolou num nó cego de inércia. Eu sou tudo aquilo em que tomei parte, também sou o que neguei e esqueci. Sou as estradas resplandecentes que não percorri, sou a opção A e B e C e infinito. Sou um mar de gotas, de pequenas gotas. Sou tudo isto. E, no entanto, não sei o que sou. 

O olho que vê o universo é o olho do próprio universo. 
E há momentos de cegueira. E há vazios onde até o eco morreu. 

A identidade é uma coisa secreta e amorfa. E, no entanto, aquilo que não é não existe. E, por vezes, nesta busca incessante e dolorosa, expiro numa janela para ver se uma mancha baça se formou. Assim sei que estou viva e tenho uma identidade. Uma identidade que é um borrão de calor no frio de um vidro. 


quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

A Ameaça Fantasma

A ansiedade é como uma velha companheira que tem ímpetos de jovenzinha excitada na primeira noite de amor. Ela chega como um golpe profundo no peito, como um murro que nos tira o fôlego, como se em câmara lenta se partissem as costelas de fora para dentro, uma implosão no íntimo. As fundações tremem numa inércia insuportável deste prédio que não cai. Ah, a ansiedade, uma morte iminente que nunca chega. Morre-se num afogamento simulado, todas as vezes que esta velhinha companheira irrompe. Chega-se mesmo a sentir o frio cortante da água. É uma mão de gelo e de fogo que nos segura o coração e, eventualmente, o aperta suavemente em movimentos dolorosamente controlados. É uma agonia intensa, mais intensa porque se vive por dentro. Quem nunca se sentiu morrer quando, paradoxalmente, nunca se esteve tão vívido de medo, não sabe o que é ansiedade.

O poeta dizia que era ferida que dói e não se sente, um fogo que arde e não se vê. Todos pensam no amor, eu penso na ansiedade, numa espécie de dor mesquinha, que nem se permite sentir.

Às vezes, quando olho o mar em dias de nevoeiro, numa calmaria de águas inescrutáveis e de céu cinzento, e sopra um vento fétido de mudança e desgraça, sinto a natureza mimetizar a minha ansiedade. É assim que eu sou quando estou ansiosa. Não se vê, pressente-se. E morre-se em ansiedade por isso.

Quando finalmente a tempestade emerge, e esta velhinha insidiosa se mostra, é num gorgolejo de moribundo. A ansiedade libertada é um novelo de vergonha e de nudez que se expõe ao mundo. Não é cura; é alívio. 

A resposta para este caos contido é uma nova ordem das coisas. Uma linha ininterrupta e saudável de pensamentos. A vida tem de ser uma lista ordenada e limpa de coisas, até que se recupere o controlo.


segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

From the twilight: A noiva

Uma tristeza antiga como uma sequóia  Abraço-a, sinto os seus anéis colidindo no seu interior, 2000 anos de matéria que cresceu lentamente, numa espessura de fio de cabelo que se acrescenta num ano, e que por milagre se vai formando forte e inabalável. Há um conforto nas coisas conhecidas, mesmo que tristes, mesmo que amargas. Há uma terna constância num movimento que se perpetua, na ausência da mudança. É mais fácil ser sequóia do que ser orquídea. É mais fácil ser triste do que ser feliz. 

É como a sedução elegante de uma noiva tímida, que não se dá ao primeiro aceno do noivo. 
É como um flor que desabrocha tarde, esperando o luar perfeito. 

Há nestas coisas um risco, o risco estéril de não o serem: nem a noiva de ser noiva, nem a flor de ser flor.

Há um casamento que não acontece, há uma primavera que não vem. E os desejos que são novos desvanecem-se como um perfume num dia de vento.

É este o restolho da soma dos dias. Uma soma de dias, que não perfaz uma vida.

Um crepúsculo de esperanças que precede um longo e doloroso anoitecer. 
Ainda o dia não nasceu em esperança. Ainda não.



domingo, 6 de janeiro de 2013

From the dark: Mr Tambourine Man

AVISO: Há coisas, lugares e sentires, que não devem ser postos no mundo. Às vezes são demasiado pungentes, envolvem vergonhas ou escândalos mas, na maior parte das vezes, são apenas demasiado dolorosos para serem partilhados. Não obstante tudo isto, há uma emergente necessidade de os libertar de alguma forma, a catarse é a única maneira mais ou menos sã de nos tornarmos livres, nem que seja por breves momentos. É possível que preocupe uns, que choque outros. Mas o importante é que, agora, me é permitido respirar outra vez. Demónios soltos, fantasmas exorcizados. É para isto que também servem as palavras.

O Homem do Tamborim

Lá vem ele, o homem do chapéu preto.
Ele que tem o rosto encerado,
Metade uma máscara que não se vê,
Apenas se pressente, como um anúncio de morte.

Os seus passos se sucedem em becos escuros, e
Na penumbra, se ouvem hordas de corvos
Que se levantam num frenesim de despojos.
Eu sei que ele vem aí, dentro de mim
A noite escura chama-o. Hoje, desnudei
O meu peito descarnado à luz da manhã
e o sol lambeu as minha feridas,
numa condescendência insuportável.

Eu já não sou eu, a que se desnuda
Sou uma pálida sombra do que fui
E este peito descarnado, está para 
Além da cura.

Ele vem aí, o homem da corneta,
da meia beata na boca, do fumo
Que se eleva num bafo ameaçador,
Num movimento de desafio.

Ele vem aí, com a aba do chapéu
Suja e engordurada, E tudo nele
É morte e putrefacção.

Ele vem aí tocando o aviso de batalha,
E já nada em mim tem o ímpeto da luta.

A batalha começa. Eu já bato em retirada.
Ouço a corneta da morte e, quase docemente,
Espero cair nos seus braços.

Perdão, de um lugar muito escuro escrevo,
E sonho e sinto e espero.