segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Viver no aquário, suspirando o mar

Ontem vislumbrei uma estrela cadente, na sua viagem de um segundo. Durante a sua existência efémera, tentei formular claramente um desejo ao universo, como diria a tradição popular. Mas não consegui. Apenas fui espectadora acéfala do seu movimento de rara beleza, apenas me coube em vez contemplar o seu movimento etéreo como se contemplam as coisas raras da vida: com assombro, com temor e de mente vazia. Um estranho e solitário momento em que o céu se iluminou para em seguida mergulhar em noite escura. Um momento em que a minha alma se esvaziou do deserto que passeio dentro de mim nos dias vulgares, para se encher com a luz de um momento perfeito. Não sei se outros partilharam anónimos este momento, mas pareceu-me que o universo encenou para mim este fenómeno celestial. Será presunção? Será delírio? O certo é que, após reflectir este fenómeno no tempo imediatamente póstumo, senti como nunca a intensa solidão e o privilégio da mesma. Coube-me em vez este momento e nada, mesmo nada, é tão intensamente maravilhoso como ter a consciência disso mesmo. Esta cópia imperfeita de uma Eva longínqua, olha com assombro para os milhares de anos de vida que a precederam na história do mundo, para os milheres de anos que a esperam a viajar com o pó das estrelas, e concentra-se neste momento presente, em que está aqui e agora, em que diz:
 
- Eu sou. Como nunca fui, como nunca serei. Não voltarei a olhar a estrela cadente, não voltarei a repetir este segundo, nos milhares de milhões de segundos do tempo e da vida. Sou Eu, e estou aqui e agora. Nada é mais divino.
 
Alguém gravará este momento? Um fantasia big brotheriana perspassa-me o espírito. Agito a cabeça em tom de meneio...não, ninguém recordará como foi, porque o que recordamos não existiu como tal. Recordamos um filme, uma versão melhor ou pior, sob o filtro baço dos nossos olhos, tudo o que aconteceu. Cabe-nos apenas viver, viver sem dormir. Ter consciência disso mesmo. E não carregar a dor do que se viveu e não volta, como um fardo que nos prende e esmaga. Não vender também este saber pela anestesia do sono e da ignorância.
 
Viver o presente, porque é esse o nosso destino maior.
 
 

 


terça-feira, 23 de outubro de 2012

Amor e outras falácias de liberdade

Há uma mentira no amor que não lhe tira a grandiosidade, nem lhe apaga a centelha divina, mas é uma falácia.
Não conhece o amor quem diz que é livre.
Quem ama é prisioneiro, sempre, e, constrói para o objecto do seu amor, uma prisão para toda a vida.
 
Quem ama, circunscreve o seu amor dentro daquilo que é. Ninguém ama na imaterialidade, o amor é uma extensão de nós mesmos, ocupe o que ocupar, tem as nossas cores, a nossa marca inexorável. O amor é incondicional? MENTIRA, não confundamos infinitude de tempo, com ausência de condicionalismos. Quem ama quer devorar o que ama, quer tê-lo dentro de si, absorvê-lo, moldá-lo, porque ninguém é tão perfeito para nós como nós mesmos! Amar é jogar com posições no tabuleiro de xadrez, umas vezes somos peões outras rei e rainha...amar é perder os contornos, não saber se os seus olhos se fecham com o sono do outro, é olhar permanentemente o espelho e surpreendermos o outro no nosso reflexo.
 
Então porque, uma e outra vez, colocamos quem amamos no plano divino, e ficamos mortalmente siderados quando estes falsos deuses nos ferem, nos espezinham, são malévolos e exigem a nossa cabeça? Porque nos surpreende tanto que o seu amor, aquele amor que nos fez crescer e voar, semeou em nós tão amargas flores, que colhemos toda vida? Por acaso amamos nós com perfeição? Não exigimos tantas vezes do outro o que para nós é impossível?
 
Aceitar que amar é destruir o que mais se ama, com a espada, com um beijo, e reconstruir em seguida, é caminho de sabedoria. Amar é aceitar ser-se conduzido, ser insano e aplaudir a insanidade. Amar é estar-se preso com vontade, é entregar as chaves do cárcere ao carcereiro e esperar que ele seja gentil e volte no final do dia.
 
Amar é cair e compreender que se vai voltar a tombar. É deixar cair e perdoar.
 
 
 
 

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

As últimas flores

As flores de hoje são raras e morrem jovens. Tudo o que subsiste está cheio de velhices, de sorrisos cristalizados, de rugas prematuras em rostos cansados. É este o tempo dos meneios lentos de cabeça, numa passividade dolorosa, dos ombros encolhidos e túrgidos, sob capas empoeiradas e cinzentas de chuva.
Hoje é perigoso ter-se esperança.
Hoje suspeita-se da alegria como uma nesga de céu azul por entre as nuvens.
A única pérola neste mar de tristeza poderia ser uma certa liberdade, a vontade calada perante o impulso animalesco já libertado, a perda de controlo, o ser-se verdadeiramente o que se é, sem máscaras nem subterfúgios, sem vaidades. Quando tudo está perdido, poder-se-ia ser feliz na mais pura liberdade de quem nada teme, nem nada mais tem a perder. Mas vivemos todos agrilhoados. Grilhões de ouro para alguns, de ferro para outros, mas todos subsistem numa torre de clausura, muitas vezes em si mesmos. Negamos o privilégio derradeiro de sentir esperança.
 
Há um clima bafiento no mundo, que nos amputa, que nos cega, que ensurdece. Nem o silêncio está vazio de vozes: ainda há quem dê um nome ao seu sofrimento, ainda há quem use a voz e pergunte, ainda há quem se lamente e peça ajuda. Neste silêncio de ecos, quero ouvir a minha voz, devemos ouvir a nossa voz, ainda que enfraquecida, ainda que rouca.
Ainda não se morreu em esperança, ainda não. Ainda vejo uma pequena janela para o mundo. E, lá longe e em altura, onde o horizonte se derrama, onde o fim do mundo está à espreita, vejo cores e florestas e uma cria humana que inaugura um novo mundo.
 
 
 

sábado, 13 de outubro de 2012

Viajar quando há lobos à espreita na porta

Cada pessoa é um mundo em si mesma e, por vezes, na sucessão de dias que é a vida, tudo o que vemos são os limites de cartão deste mundo. As proporções são estranhas, as fronteiras definidas mas estreitas, as tristezas verdadeiros naufrágios e, as alegrias, são como encontrar uma pérola dentro de uma concha. A perspectiva tudo reveste de ilusão e engano, a posição relativa de cada um no seu mundo é uma alegoria da cebola. Disposta em camadas, cujas dimensões não são claramente definidas, mas existindo um certo individualismo. Às vezes, a relação com os outros é como uma pele disposta em sobreposição, aderente e deslizante, demasiado próxima para ser distinguida. Por vezes, é uma casca grossa, resistente, divorciada de tudo o que jaz imeditamente inferior e superior, para dentro e para fora.
 
Viajar, é ver o nosso mundo inscrito noutros mundos. É como se uma onda gigante inundasse o convés o barco onde, através de um telescópio, observávamos o mundo e, depois de um momento de quase afogamento, vissemos com clareza, sem que um véu de vidro nos ofuscasse a vista. Para ver em claro, é preciso viajar. Ser viajante é mudar a perspectiva, é por-se na linha da frente de batalha, é expor-se ao desconhecido. É encarar a nossa pequenez com desprendimento, é entender que cada viagem é uma oportunidade de mudança, é perder a ingenuidade sem abdicar da transparência.
 
Eu pertenço aos agricultores deste mundo. Gosto de semear, de cuidar, de ver crescer. Tenho a força para aceitar que nem sempre há colheita, que há forças que não podem ser contrariadas. Tenho a perseverança para tentar uma e outra vez, porque assim é a minha natureza. Mas a maior parte do tempo, suspiro por florestas escuras, pelo prazer do risco, pela sedução do perigo. Viajo porque é visceral o gosto pelo inesperado, é excitante e vivificante. Mas, para a minha alma expectante,  o melhor de viajar é sentir que há um lugar que nosso a que podemos voltar, não obstante a sua pequenez e insignificância. Há um lugar de cheiros almiscarados, de arestas de pedra que emanam um certo calor conhecido, o prazer de ver que há um pouco de nós impresso em cada árvore, em cada som, numa cama com lençois lavados. Aqui é a nossa casa. Regressar a casa é sentir que não há vergonha, não há distância, não há desejo. Aqui tudo é seguro e tranquilo. Aqui não há lobos.
 
 
 
 
 
 

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Metamorfose adiada

Vargas Llosa dizia que a música ajuda a entender as verdades amargas. É bem verdade. Eu queria ouvir uma música e deixar-me ir nela, abandonando-me ao sentimento que nela perspassa. Queria um desprendimento do corpo, uma certa transparência de alma. Talvez esta dor recente, não seja a tristeza dos dias, destes dias de sonhos vencidos, de violência, de insanidade colectiva, talvez seja um sintoma de uma alma que pesa com o peso do tempo que não muda. Talvez esta tristeza seja uma pele velha e caduca, que se retesa como couro ressequido ao sol, mas não se rompe.

Esta deriva sobre a tristeza, esta demanda em persegui-la, em aprisionar-lhe o sentido, talvez seja a forma errada de combatê-la. Não será até o combate a verdadeira cura. Tenho de deitar-me com esta tristeza, contemplar o seu corpo, deleitar-me com a sua argúcia, teimosia, paciência. Deixá-la reinar sem amarguras, sem revoltas. É o tempo dela, será companheira natural. Tentar não fazer da tristeza o meu carrasco, deixá-la instalar-se devagarinho. E, quando chegar a hora, estar preparada para a deixar partir...




Telescópio

A luz que nos permite ver, demora sempre um tempo a atingir a nossa retina. Tudo que vemos é passado. O presente só existe de olhos fechados. Só vemos a verdade quando nos tornamos cegos. O sentir é a verdadeira visão, é o que nos permite ver outro tempo que não o passado. Sentir é a única forma de viver no presente e de pressentir o futuro.

Quanto mais se recua no passado, mais opaco se torna o universo. Além de um certo limite, a luz já não consegue alcançar-nos.
Hubert Reeves