quarta-feira, 25 de julho de 2012

Voltar aonde fomos felizes

Há tantos que já descobriram o verdadeiro tesouro e, esses, andam como loucos em insónia constante, querem fazer cada segundo importante, cada dia memorável. Esta é a angústia de fundo. Estes, vivem mesmo, e sofrem feroz e inutilmente. Sofrem porque pressentem o sentido em tudo, mas não o conhecem. Afinal, não compreendem que conhecer o outro lado do espelho é deixar de se ver a si mesmo. Não compreendem que compreender o sentido é perder o sentido.

Aqueles que dormem, esses, vivem uma quietude estéril. Tudo o que constroem são castelos de cartas e casas de vidro. Eu construo nada, mas morrerei construindo. Eu busco tudo, e no fim, verei que já tudo havia sido encontrado.

Mas ainda desejo. Quero aquele momento, no cimo da montanha, em que contemplo a cidade a que breve chegarei e sinto que estou no lugar certo, à hora certa. Sinto que nasci de novo, depois de morrer muitas vezes.

Sentir que se permanece, apesar de tudo, mas mesmo tudo, é a maior benção.

Um poema cheio

Ainda te falta
dizer isto: que nem tudo
o que veio
chegou por acaso. Que há
flores que de ti
dependem, que foste
tu que deixaste
algumas lâmpadas
acesas. Que há
na brancura
do papel alguns
sinais de tinta
indecifráveis. E
que esse
é apenas
um dos capítulos do livro
em que tudo
se lê e nada
está escrito.



Albano Martins
Escrito a Vermelho

Eg anda - Eu respiro

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Niágaras no deserto

Ontem subi ao tecto do mundo
e tudo era azul e imaculado.

Ontem vi um botão de rosa a florir,
Uma borboleta a sair do casulo.

Ontem espreitei a água e vi
uma onda de espuma fria que
devagar, se derramava na praia.

Ontem vi um sorriso inaugural,
depois de um século de tristeza.

Ontem sonhei com um amanhã
em que eu estava com o mundo
e no mundo, e tudo estava certo.

E nada disto se compara
ao que hoje sucedeu.

Hoje tive a alegria de receber
um presente que era um sonho,
um sonho de mim quando estou só
cá dentro, um globo de neve perfeito:
Um jardim e uma borboleta e água e neve
Um movimento suave, um rodopio e
música. Uma caixa de música.

Alguém que me conhece,
que me guarda e que me deu
um presente que sou, quando,
a dormir, sonho comigo e sou feliz.

Obrigado e até breve.


quinta-feira, 19 de julho de 2012

A perfeição é inimiga da Espécie

O Homem só consegue amar o que é imperfeito. A perfeição ameaça a sua individualidade, produz-lhe um desconforto insuportável, de se sentir sempre inferior ao que se ama. A perfeição faz o homem cair em defeito de tudo que pode realizar e alcançar.
É por isto que mesmo deus teve de experimentar esta imperfeição.

A imperfeição engrandece-nos, porque potencia o sacrifício, equilibra as exigências. Amo-o não obstante a miríade de coisas imperfeitas e más, as coisas pequeninas que ferem. Amo-o porque desculpabiliza as minhas também pequeninas maldades.

Mas se não existe perfeição, como aspiramos a ela?  Como ansiar algo que não existe? Por isto acredito que há em cada um uma versão melhorada de si mesmo. Uma versão que, senão perfeita em essência, pelo menos completa, saciada. É por esta saciedade que continuamos a crer que amanhã será um outro dia. Nascemos perfeitos, crescemos e aprendemos na imperfeição.

Somos Sífisos empurrando a pedra montanha acima, endeusados, iludidos com um cume perfeito.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Aniversário, brevemente

Celebrar a passagem do tempo é uma necessidade antropológica. Seja o controlo temporal das dimensões físicas deste mundo, seja a contagem do tempo desde que morri, renasci, naveguei ao fundo e emergi. Contar o o que o tempo nos faz, nos rouba, nos devolve. Contar o tempo que fomos felizes. Sentir o tempo que avança quase parado, cujas passadas batem dolorosamente o chão. Sobretudo, celebrar este tempo que passa inexoravelmente, saborear a sua nostalgia, sentir que estamos vivos, não obstante esta tristeza, esta fome, esta sede. A propósito de tudo isto, um poema que des-cre-ve tu-do mas mesmo tu-do isto.

Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Álvaro de Campos, in "Poemas"

sexta-feira, 13 de julho de 2012

O Plano A, B, C, D alfa e ómega

Há uma passagem na biografia de Che Guevara, já na Bolívia, em que no limite da exaustão, da fome, da sede, do ataque incessante dos parasitas, dos elementos extremados, do tempo que se arrastava numa marcha impiedosa, da desistência calada dos companheiros de luta, Che demonstra porque estava animado da força mais poderosa do mundo: a vontade. Uma vontade quase sobrenatural, um ímpeto que de tão humano se confunde com o divino. A maravilha de acreditar...



quinta-feira, 12 de julho de 2012

Reflexo ancestral

É assim que gosto mais de me ver: um fio de luz que me atravessa, uma luz que vem de dentro e que se derrama, uma ténue claridade que o foco quer prender na posteridade, um segundo que desafia o movimento.

Contemplar, ainda que por breves instantes, a luz que temos em nós e que resvala na vida, recorda-nos um plano primordial e longínquo, o plano A. No início, todos éramos perfeitos. Há um nascimento imaculado para cada um de nós: houve um momento em que todos fomos puros, e não havia passado nem futuro. Esta saudade, esta perda primitiva está inscrita de forma indelével em cada átomo do nosso ser. É por este recém-nascido que suspiramos, é esta promessa de tudo o que é bom, íntegro e inocente que tentamos ver no espelho, que acreditamos até ao último instante que ainda existe.  

O regresso ao princípio, quando este principia exactamente no fim. O resultado é a que a saudade jamais desaparece.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Abdicar de fantasmas

Quem diz que está só, mente, porque nunca está só. Mesmo deixando deus e os santos a dormir, nunca estamos sós.
Nós somos nós, e os fantasmas.

Eugénio disse um dia que se deitava ao lado da sua solidão, e lentamente contemplava o seu corpo suave e frio. Também nós nos levantamos e deitamos com os nossos fantasmas. Existem duas classes de fantasmas. Há os espectros de massas: a crise, o défice, a inflação, a guerra mundial, a bomba atómica, a diplomacia inepta, as fronteiras ameaçadas, os discursos, o capitalismo, o monstro da esquerda, o monstro da direita, o papa e a cabala e o ramadão. Mas muito mais pequenos, quais micróbios que assumem na placa de petri dimensões gigantescas, existem os espectros individuais, que são aqueles parentes que ninguém quer como seus, mas estão aqui, qual ligação visceral e sanguinária. Estes nados-mortos carregam bichos-papões, erguem falsos deuses dourados da vaidade e da soberba, elevam estandartes aos nossos mortos, e pesam, pesam. A respiração torna-se sofrida, os membros arrastados. É difícil viver.

Hoje é o dia em que escolhemos deixar cair os fantasmas. Hoje, com verdade ou malícia, eles, os espectros, ficaram para trás. Aqui só há luz, e ar e pessoas boas que nos amam. Aqui só há verde e azul, e a luz branca brinca na pele e no cabelo. Aqui respiro, e os meus pulmões processam veneno mas destilam mel. Cheira bem, a flores e a baunilha. E ali, há chocolate quente à minha espera.


quinta-feira, 5 de julho de 2012

O caminho do Homem Revoltado

Quando o homem paciente é posto à prova, quando este homem manso é levado para arena e é zombado, serve de alimento aos animais e de entretenimento às verdadeiras bestas; quando este ser pacífico é manietado, os seus sonhos amordaçados, a sua vida limitada, maltratada; quando a este homem nada o espera senão abuso e indignidade, este homem jamais volta ser homem: é o autómato da sobrevivência.

Quando isto dura tempo e tempo, e a servidão se prolonga numa agonia lenta, é a hora do grito de revolta.

 Perante os algozes, nada mais há a perder, tudo está perdido mas tudo pode ser encontrado. É o caminho da revolta e, a vida, é do revoltoso. O prémio é o regresso da vontade que faz milagres, que move montanhas que faz colidir partículas e gerar mundos.

Este é o caminho da paixão e ela é sôfrega. Mas não há hesitações nem medos. Este caminho, do homem revoltado, é do homem que eu amo. Amo um homem que não existe. Amo em mim uma mulher não nascida. E sonho com ela e com ele. Por eles, deixava as cavernas e enfrentava as sombras. Por eles, por estes homens e mulheres que vivem em nós, deveríamos elevar-nos e lutar. Sair à rua. O tempo do homem paciente está a terminar!