quarta-feira, 29 de maio de 2013

Short Story de um despertar

São três da manhã. Está tudo branco e tranquilo no quarto de hospital. Uma luz ténue e tremeluzente incide na minha nuca e eu sinto o seu calor desmaiado na minha pele. Olho em volta, espreitando por entre pálpebras adormecidas, empastadas de sucos secos, lágrimas retidas, sem inclinação para rolar. Estradas que se cruzam num emaranhado complexo, um sistema de tubagens transparentes encruzilhadas resolvidas com clampes e clips e torneiras e seringas. E eu no meio, branco, leitoso, estradas azuis que se cruzam e se abrem para o exterior, cateterizadas, líquidos brancos e transparentes com cheiros indecifráveis, a comida de cão e a desinfectante, pungentes, que ferem as narinas. Narinas? Que fluxo é este que soa como água em cascata e sopra como deserto nas minhas cavidades sem pêlos... Oxigénio? Ainda respiro? Um fôlego na noite mais fria do deserto mais frio, é assim que saboreio cada inspiração. E a boca? Seca, cristalizada num hálito a podre, a morte, a palha seca e alguma humidade que se cola como se lambe um selo de carta. Um impulso nervoso que envio frenético para a parte de baixo do meu corpo. Ainda caminho? Ouço um crepitar de lençol que se balança levemente, sobre os meus dedos. Um esboço de movimentos é tudo o que vejo, quando dentro de mim já dei cambalhotas e pinotes como potro louco. Músculos que se derretem como manteiga em lume brando, numa sertã preta brilhante... FOME! Como pungente, como murro que criou um vácuo no meu ventre, um fogo que queima em gelo, sinto fome louca de garanhão no centro reprodutor. Tento falar. VOZ? É silêncio que ouço. Tento localizar...cordas vocais, garganta. O que é isto? Um tubo cilíndrico que tacteio com a mente. Merda, mais um tubo. Olho para o nariz e confirmo uma mangueira que me sai da cara . Estou em animação suspensa, como um poster dos anos 70 de vida suspensa no gelo, à espera de um futuro melhor. Tento falar, vejo os lábios moverem-se quase imperceptivelmente. Um gorgolejo aflito escapa-se num som horrível. Um afogado no seu último suspiro faria melhor. As minhas mãos, dedos descarnados como um cadáver ou como uma ave de rapina prolongam-se em aparente inanição. Um botão vermelho brilhante, debaixo do dedo indicador. Uma campainha, uma janela para o mundo, reflito. Ordeno à polpa que resta na ponta do meu dedo que se projete com toda a força sobre aquela montanha impossível, de chamada para a vida mais além. Ouço, ao longe, um som estridente. Passos próximos no corredor, pés debatendo-se no chão vazio. A porta desliza. O ar desloca-se, há mais um corpo no quarto, quente, uma respiração sôfrega de esforço e de ansiedade. Num segundo, deu a volta a cama, eu estou de lado, penso. A primeira vez de um homem, ou do que resta de um homem. A primeira vez desde que acordei, a minha desfloração na humanidade. Um olhar límpido e castanho, profundo como a noite mais escura, quente como a terra verdadeira, da minha aldeia. Uma mulher, que maravilhoso regresso ao mundo dos humanos, mesmo que ainda em forma de máquina, mesmo que ainda em forma de sonho. É um sonho não é?



segunda-feira, 20 de maio de 2013

A vontade não tem sombra

Já vi todos os paradoxos, os contrários, os impossíveis e os inesquecíveis da vida.
Dias de Sol transformarem-se em violentas tempestades. 
Da mais pequena semente à mais frondosa árvore em apenas alguns dias.
Solos infecundos e rochosos e uma delicada flor azul, que se expõe em assombro.
Crimes hediondos e criminosos inocentados. Lobos em cordeiros.
Perdão em vez de vingança. 
Amores eternos e não correspondidos, que subsistem estéreis à intempérie do tempo.
Velhos e rugosos com a força da juventude, jovens que cedo são velhos e carcomidos, encolhidos sob mantos de tristeza e de inércia. 
Um país de paraísos que se afunda na abundância.
Doença que ceifa na juventude e um amor constante que se derrama na dor e a suporta.

Já vi tudo isto e, no entanto, ainda não tinha vivido esta força transformadora, que vira o mundo ao contrário. Ainda não tinha experimentado a vontade que atropela o corpo. A vontade que não tem sombra nem fantasmas.

Acreditar nisto é bálsamo para os fracos e é lição para os fortes.

Por isso, quando tudo se tornar negro ou cinzento, quando o centro de dor explodir numa luz cega e branca, quando a incerteza for a matéria que constrói os dias, finca os teus pés no chão, sente o solo primitivo e eterno, fecha os olhos e deixa que nasça em ti a força da vontade, que ela te preencha lentamente, cada cavidade, cada estrada de sangue e de suor, que se derrame em cada poro, que se solte em cada sopro de vida, em cada batimento cardíaco e, aí, dá um passo, e depois outro e outro e outro... 
E assim se caminha, se vive e não se deixa morrer.




sábado, 11 de maio de 2013

To the wonder

Amar. Arriscar solidão, traição, mentira, desilusão e a possibilidade de transformação em algo Maior. Acordar o divino que permanece adormecido em cada um de nós. Ver, ver de verdade, sem máscaras, sem coberturas, sem lentes, o Outro. Um outro que é frágil ou forte, um estranho por vezes. Um estranho que habita em nós quando a ele dedicamos o amor. O nosso passageiro branco, ou negro. 

Um mundo das escolhas, das possibilidades, ou de nenhuma, pois quem ama já fez todas as escolhas possíveis, ou a única possível. Amar é reiterar esta escolha, não obstante... Tudo.





quinta-feira, 9 de maio de 2013

Fome ou Pátria: a resposta do canibalismo em tempos modernos

Uma planície sem contornos, estendendo-se sem fronteiras até onde morrem todos os olhares. Nenhum caminho, nenhuma direção. Sob os pés, um solo sempre igual, terroso e remexido, calcado mil e uma vezes infinito, por tantos pés e cascos de diversas bestas e seus cavaleiros, no alto montados, derramando-se desde o início do mundo, sobre o dorso cansado de seus escravos. Nenhuma orientação, o olhar é sempre para baixo, pois aqui morreu a fé e só há pessoas rasteiras e bestas quadrúpedes de corcundas milenares, sempre espezinhadas - o céu é para o loucos e sonhadores e assim não se vêem as estrelas. Há vermelho e verde do chão, sempre igual. Há cheiros pestilentos de fomes e de sedes nunca saciadas, há o odor nauseabundo, disfarçado de perfume, da corrupção, da indignidade, da desonra. Até o suor dos escravos é doce fragrância comparada com esta podridão de coisas.
Os mesmos de sempre comem os outros de sempre. Há parasitismo sectário, há sanguessugas pretas alimentando-se do sangue dos incautos ou dos inocentes. Há canibais e comensais, neste banquete de pobreza e de incompetência, há apetite para todas as coisas. Aqui, nesta planície que é Portugal ou qualquer outra terra moribunda, os olhos estão cegos e os ouvidos estão surdos: só há bocas escancaradas, varredores de necessidade, sorvedores de esperança e de vontade. 
Não tardará a reinar a desolação e a planície será deserto ou inferno.
Ao longe uma criança nua. Um arauto da desgraça ou um estafeta de esperança. Uma nau que se olha com saudade, nesta planície de marinheiros em terra e de mulheres que esperam de pés descalços. Vejo-a ao longe e, breve e sorrateiramente, as bestas de carga estendem o seu olhar cansado, e um brilho derradeiro se estende em ondas... Um desejo, uma vontade. 
Que esta criança cresça portuguesa. Que esta nau retorne e transforme este cais de origem. Que as mulheres não morram viúvas. Que as crianças não fiquem órfãs. Que as jovens não envelheçam virgens extenuadas numa maternidade adiada. Que as mãos dos homens não estejam vazias, com bolsos sem fundos de dignidade, com olheiras até ao peito, que esmorecendo se contrai, mais por hábito do que por entusiasmo. 
Que tudo isto não seja planície. Antes vale, ou montanha, ou mar encrespado. Antes vida do que morte.


terça-feira, 7 de maio de 2013

Verdadeiros reis caminham nus

Acreditei, durante muito tempo, que caminhava. Enganei-me, claramente. Não caminhava, acumulava. 

Coisas: pequenas e grandes. Pedras: redondas e angulosas. Desertos: frios e abrasadores.

Não caminhava, os dias sucediam-se numa roda dentada, que dolorosamente e aos soluços girava, ao sabor de um laborioso esforço, mais por hábito do que por vontade.
Agora que parto, agora que caminho, vejo que me despojo de tudo que acalentei como tesouros e que, agora, vejo como fogos-fátuos de vergonha, efémeros e vazios de eternidade.
Caminhar não é perder... nem coisas, nem pedras, nem desertos. 
Caminhar é a derradeira liberdade: é ter controlo sobre e não se ser controlado.

Parto, e vou quase nua, as minhas vestes transparentes são o medo... e a vontade.

E esta é a verdadeira forma de se partir, de se caminhar e de se ser. Como se nascesse de novo.