quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O desejo que nos morre

Uma criança de seis anos em frente a uma loja de doces, cores brilhantes que se derramam pela porta, vermelhos de luxúria, brilhantes de açúcar. Um velho num banco de jardim perante o tombo lascivo de uma mulher, cujas coxas se fendem através das saias, brancas de alvura e de carnes rosáceas. Homens de braços desnudos em dias de chuva, indiferentes ao frio, de máscula resistência à intempérie, músculos que se retesam sob o peso de um qualquer objecto, e em beleza se contraem, gotas gordas de chuva que rolam naquela pele morena. Uma mulher com uma farta cabeleira de um vermelho rubicundo, flamejante e atrevida num dia cinzento, homens que se detém na sua passagem, imaginando guerreiras amazonas com seios que se empinam sob tecidos de fina transparência. Opulentes pedras de um dourado refulgente, diamantes em platina engastados, couros trabalhados, máscaras e capas de teatro, mentiras e faz de contas cheios de fogos de artifício, rasgos de cor e brilho em noites escuras. Um som distante de aplausos, que vai em crescendo, uma recordação de fama e de engrandecimento, um lugar no topo do mundo, efémero e intenso.

Algures um lamber de lábios, uma língua bifurcada que fareja o ar e saboreia saliva na mais absoluta lascívia.

E assim o desejo irrompe, primeiro tímido, depois forte, sem vergonhas ou outras fraquezas. Assim há uma chama de vida tremeluzente em cada um. 

O íntimo desejo inflama-nos de vida e... Hoje, este desejo morre-nos em dívidas e em dúvidas, em medos e ameças. Morre-nos amordaçado pela carestia geral. 

Em tempos de crise é proibido desejar. É mais fácil ser moribundo que viver.



sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Penélope, a aprendiz de equilibrista

Escolher acreditar é a tarefa humana mais difícil.  Acreditar e confiar no melhor por vir, 
é caminho de dúvida, de equilibrismos impossíveis, de castelos de cartas.

Hoje, escolho acreditar. Quem caminha na Fé, quaisquer que sejam os seus pés de barro, escuda-se na dúvida para crer mais alto, mais longe, mais fundo. Quem crê, começa devagarinho a criar a sua história, a tecer o seu sonho nas encostas da realidade. O crente assemelha-se à noiva Penélope que tece o enxoval para o seu marido distante e, à noite, o desfaz para iludir o tempo e o cansaço. Depois, haverá sempre o amanhã.

Acreditando, eu sou uma noiva, ansiosa na minha crença num futuro de coisas seguras e amadas. O meu amado virá quando a dúvida se tiver instalado de forma definitiva e, insidiosa e ardilosamente, quase sacudiu a fé. Não obstante estes caminhos vacilantes do noivado da crença, quando ele vier, terei um lindo lençol para ambos envolver, com fios retesados sob a dor e a tristeza, imaculadamente tecidos sob o branco do orgulho das pequenas conquistas. Ele, o meu amado, verá rosas pequeninas, que ao longe parecem nós, encruzilhadas de hesitações e de mal-entendidos, que bordei em algo belo. Teço o meu véu de doces conjecturas e de profecias caseiras. No final, sei que terei toneladas de tecido para fazer uma bela fogueira,  os delicados sonhos em que investi a minha crença, arderão em belas cores - é bom deixar para trás o que não interessa e não se consumir em raiva. Estarei pronta, então, para tecer em fé e em sonhos de novo.

Crer, para libertar a alma do jugo da desesperança. 
Crer, porque acreditar é o derradeiro exercício de escolha, a única que permite avanço. 





terça-feira, 20 de novembro de 2012

A pátria inventada

Que lugar é este, este lugar imaterial cheio de coisas que vivem e não se veêm - a nossa Casa, aqueles cheiros habituais e seguros, aquele sentimento único de regresso protegido ao útero materno, do qual saímos a protestar e a rastejar e para o qual tentamos regressar todas as vidas que percorremos?

Que lugar é este, que palavras atropeladas e mágicas saem destas bocas estranhas e que, estranhamente, soam compreensíveis?  Que língua é esta, de voz cantada, de ditongos redondos e sonantes, com eco de montanhas azuis, de palavras longas e quebradas, de rimas adocicadas com cravinho e canela?

Que rostos são estes, com marcas indeléveis na sua fronte, de sofrimento e dor e saudade, de dedos de cinza marcados, que os identifica como filhos de um mesmo pai, filhos de uma mesma mãe, progenitores de longas encostas de verde e de castanhos de rochas e de mares azuis de espuma encrespados? 

Que lugar é este que, quando partimos, vamos sem rosto, sem língua, sem identidade, em que o fio de tempo que compõe a nossa vida se parte e o que fomos e somos ninguém conhece?

Partir deste lugar é ser-se estrangeiro. É ter a liberdade de se pertencer ao mundo, grande demais para se encontrar o que quer que seja. É ser-se fantasma no início, sem pés que o prendam à terra, sem mãos para tocar. Ser-se estrangeiro é descobrir outro lugar assim, de pertença, é desfiar uma nova história, porque sem este chão a que chamamos pátria não é possível ser-se feliz.




terça-feira, 13 de novembro de 2012

Poema de sumos e outras frutas

Queria que adormecêssemos com o cabelo
num desalinho, corpos desarticulados
limites esbatidos no contraluz,
ângulos impossíveis e suados,
pele suspirando pêssegos
gotejando sumo, carnudos
de pele acetinada, areia entre
os dedos, restos de sal sequioso nas
pregas perfumadas de estio e de calor.

Queria que desfalecêssemos com o cansaço
dos amantes entrelaçados na pureza
do branco das casas, no alentejo de
campos de urze em que galopei
teu flanco, pêras doces e douradas que
lambíamos dos sexos palpitantes
do teu colo, da tua margem íngreme
caíam palavras aos supetões,
sussurradas, segredadas quando
ainda não amanhecia, dia em que
adormecíamos, de amor e de luxúria.

Roupa de sal que despíamos,
com carinho, recolhíamos a roupa
do chão, despojos de batalhas em
pomares, por fruta madura que não
abandonávamos na árvore, na idade
em que tudo se consumia, tudo se bebia,
sôfregos corpos leitosos, túrgidos de
ais e uis e de cascas que se fendiam ao
menor toque, ao primeiro trote de
cavalo orgulhoso, e forte, à chuva e
ao sol, na cama, no alpendre, no chão
na arca do teu trigo, no baú das tuas
coisas recordadas, sob corpos de uvas
a cheirar a mosto, beijado por gotas
de orvalho, pisados por pés largos,
dedos que saboreio na mais absoluta
lascívia, é por ela que hoje anseio
e choro e vivo. A lascívia, essa
grande dama.




sábado, 10 de novembro de 2012

Tédio revisited

Um cansaço extremo tolda-me o gesto. Coçar o cotovelo num prurido ensurdecedor é façanha impossível. Estou tão cansada, que os olhos não se fecham com o sono, esvaziam-se de olhar, são globos frios e opacos. Tão cansada, que os ouvidos não se penetram com som, são ambos frígidos na sua cegueira. O tempo não passa, é tempo que paira. Os meus passos que não acontecem, são o tempo que se mastiga a si próprio, numa digestão inútil de sonhos e expectativas. Ouço-me a mim própria e tudo me cheira a bafío, a um amontoado de coisas já usadas e gastas, que são lixo, destroços que não se limpam, antes pesam e se olham com tristeza. Agora já nem há tristeza. Também a melancolia me cansou. Já não há nada aqui. Sou um velho que não vê passar o tempo, apenas espera na inércia, e a espera já não é morte que se anuncia, porque a morte é mudança e os ventos de mudança há muito que são brisas quentes dos pântanos.


O que há aqui são desertos grandes e frios. Tenho sede, mas estou cansada e prefiro murchar e ressequir como ameixa seca ao sol, do que procurar água. Ao invés, degluto pedras frias como a lua, cinzentas e pretas de breu da noite, e elas são túmulos no meu estômago. Aqui não há calor, não há frémito de vida. O meu corpo incha, já não é redondo de curva generosa. Não há corpo nem alma, há cansaço. Há esta esquina da vida, uma réstia de luz que se insinua, uma sombra de existência. No convés da mente, procuro freneticamente laivos de dourado, no tempo em que havia cores e luz, em que o vento ainda agitava as árvores  No tempo em que ainda se esperava a primavera, em que havia ainda amanhã, o tempo em que a dormir de noite e, acordada de dia, ainda vivia.






domingo, 4 de novembro de 2012

A voz e o braço

Hoje ouvi uma voz alertar para os tempos conturbados e negros que correm. Como é difícil estar vulnerável e ser frágil e doente nestes dias. A crise obedece ao culto do forte, do perfeito, do bem sucedido. Não há lugar aos outros, nega-se a sua existência para resumi-los à insignificância. Quando a crise é um crivo que escolhe cruelmente os mais aptos, ser-se solidário entra na clandestinidade. Sussurram-se necessidades e buscam-se discretas soluções. Há medo, não se grita, não se sorri, é melhor ser-se triste e submisso. 

Mas negar aos outros o direito de ser, não lhes amputa a existência. Vão continuar a existir velhos e crianças, pobres e doentes. A identidade solidária de cada um será posta à prova como nunca, haverá o tempo de esconder esta identidade, mas nunca de a negar. A sua exortação relembra-nos porque somos humanos, porque o nosso mundo é humano. Porque ainda é permitido sonhar e acreditar, mesmo que em surdina, mesmo que a dormir. O direito de não morrer não poderá surgir como o único exercício que resta. Porque, não obstante estes reis e príncipes sem consciência, estupidamente espertos e socialmente acéfalos que temos, ainda somos, ainda subsistimos, ainda não morremos, nem em voz nem em braço.




sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Jardim para os lúcidos

Este jardim que outrora foi vivo, hoje morre agonizante sob a neve. Mesmo assim, moribundo, é belo no seu cinzento, na neve branca sobre a madeira queimada, nos pequenos tufos de verde, frágeis, à espera de, também eles, morrerem na sua vez. Este jardim, ah este jardim, tantas vezes contemplado, tantas vezes trabalhado... Fui feliz aqui, também tu foste feliz aqui. Aqui, senti os cheiros almiscarados da terra, das folhas que morrem e se renovam num ritmo ancestral, de transmutação. Aqui, cheira a quente e a frémita actividade, do zumbir das abelhas, do afã da formiga, dos vermelhos fogos, dos castanhos pardacentos. Ah, os cheiros das primeiras chuvas a fazerem amor com a terra, as mãos e unhas encardidas, as lagartas gordas retorcendo-se na lama. Os gatos nos fenos, as rosas, ui as rosas, o seu perfume doce e inebriante. Há tanto tempo que não vejo o jardim. As suas hastes altivas e másculas, os seus cálices acetinados, femininos, grávidos de vida em abundância. E os frutos! Maçãs redondas com buracos redondos de larvas, sabendo a terra e a natureza e a pecado. As laranjas podres no chão, as irmãs balançando-se nas árvores. Ah, o meu jardim, a minha inocência de tudo o que decorre do natural. Que saudades, que saudades, que dor cá dentro de tudo o que foi, do que acreditei ter sido. Recordo como se alguém carregasse no forward e tudo vejo apressado, os bichos as árvores os sorrisos as vozes, eu como uma árvore, porque tudo morre à minha volta e eu não morro, só mudo e não volto a ser feliz.
 
O meu jardim hoje jaz e é sepultura da inocência. O que te aconteceu? Sophia diria, o tempo, a dor, a morte e a sorte. Foi tudo o que me aconteceu. Foi tudo o que condenou este jardim. Agora repousa e subsiste, apesar de todo os pesares. O meu jardim, o teu jardim, mesmo que não vejas.


 
 Ver O jardim de Mão Morta I