sexta-feira, 28 de setembro de 2012

A perversão do Estado

O Estado, o que é isso de Estado? Qual a sua existência, senão uma entidade imaterial, mas dolorosamente no domínio da materialidade. Estado decorre da sedentarização dos povos, da sua evolução intelectual, estado decorre da necessidade de um líder que se realize na comunidade que lidera. Ou seja, um líder que exista porque há um liderado, numa relação recíprocamente dependente. Um estado que aglutine uma parte de um todo para, atentem nesta heresia dos dias de hoje, REDISTRIBUIR AS PARTES, EQUITATIVAMENTE.

Liderados: equitativo NÃO é igualitário; .

Equitativo é proporcional, ao rendimento, ao trabalho, ao empenho, à competência. Estado existe para ser universal, para liderar todos os que querem e os que não querem ser liderados. Porque a sociedade não contempla eremitas. Eremitário é súicídio social; é um direito, mas não é norma. Estado existe para potenciar os estaduinenses. Cada um deve ser chamado a participar, de acordo com as suas competências, no esforço comum. Desconhecimento e falta de vontade são desculpas ou subterfúgios, a combater, a orientar.

Liderados: ESTADO é solidário e ensina a solidariedade.


O estado não morrerá nunca, porque haverá estado enquanto houver sociedades. Jamais voltaremos a viver como nómadas, comendo o pó da terra e orando aos deuses por manás no deserto. Jamais. Portanto, haverá estado. E estado, meus amigos, somos mesmo nós e mais um pouco. Estado é uma espécie de centelha divina em nós, é o nosso reflexo, é a nossa essência, mas há nele algo de transcendental, de imaterial e poderoso. Para mim, estado é o garante de uma sociedade que não se consome a si mesma na ancestralidade, no ser primitivo.

Então, qual a perversão o estado? O estado, meus amigos, já não é estado, É UMA BESTA. Uma besta comilona e cega, que tateia a terra em busca de tubérculos para deglutir subrepticiamente. É uma besta geocêntrica, que vive de forma parasitária. O estado é o celibatário empedernido, o divorciado que não paga pensão de alimentos, o charlatão que vive da mendicidade às segundas e da gatunagem o resto dos dias. O estado consome tudo para si e consome-se a si mesmo.
O estado é BURACO NEGRO. É capaz de aglutinar a mais cintilante das estrelas. O estado somos nós? Não, meus amigos, o estado já nem dele mesmo é. Já não há estado, e nós estamos entregues ao bichos.


sábado, 22 de setembro de 2012

Encher bem o peito de ar no cimo de uma montanha

Ouço este solo de piano e a música entra devagar, como a tristeza, no meu coração. Há algo de belo nas coisas tristes e melancólicas. Algo de comovente, frágil mas forte. É como uma corda retesada numa guitarra, agitando-se na vibração de um toque, ou como a corda esticada na qual se equilibra o artista. Há algo de belo naquele abandono aos elementos, algo que recorda um rosto levemente inclinado à janela, com um cortina que se balança no cabelo com o vento, com a luz que se derrama na face. Há música e beleza neste momentos. Os sons calam dentro de nós, e é um sentimento de regresso a casa, como quando éramos crianças e não havia futuro. Assim recordamos a nossas lembranças mais felizes. Algo que pensávamos estar esquecido. Uma imagem, uma chegada, uma partida, uma fotografia, um banho de mar. Algo puro e luminoso. Porque recordar por vezes nos deixa tão tristes? E porque a tristeza pode nos fazer sentir tão vivos? 

Eu escrevo bem quando estou triste. Também sou mais cândida no meu trato com os outros, com as coisas frágeis. Tenho mais saudades quando estou triste, e é mais fácil recordar. O que falta, para estar feliz quando estou triste? Ah, fazer os outros felizes, acho que é isso...




quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Sísifo: Ensaio sobre a perseverança

De entre todos os mitos da antiguidade aquele que mais gosto é o mito de Sísifo. A minha interpretação vai além da leitura de futilidade que surge a ele associado. Há algo de comoventemente humano e terno em Sísifo. Já muitas vezes falei dele, de como é uma gigantesca metáfora do que sinto, de como me vejo no palco maior da vida. Identifico-me com o papel de montanhista incansável, ou pelo menos refém de uma sentença vital para perseverar eternamente, não importa como, inexorável o destino de chegar ao cimo para ver que afinal há que recomeçar uma e outra vez. Talvez a única coisa que substituiria seria o meu troféu condenado. Ao invés de uma pedra, sinto que o meu alter ego Sísifo empurra o meu coração de cristal encosta a cima. O verdadeiro suplício não é suportar o seu peso e elevá-lo acima de todas a leis da física, acima da capacidade do meu corpo, acima da teimosia da minha alma. O verdadeiro desafio, é orientar este coração frágil e vulnerável, sem que se parta, sem que se conspurque nesta terra arenosa, instável e agreste, mas com atrito suficiente para que, neste solo inóspito, o mais belo cristal seja lapidado...



Sísifo foi condenado para todo o sempre a empurrar uma pedra até ao cimo de um monte, caindo a pedra invariavelmente da montanha sempre que o topo era atingido. Este processo seria sempre repetido até à eternidade.

Mito de Sísifo. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2012. [Consult. 2012-09-20].
Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/$mito-de-sisifo>.

domingo, 16 de setembro de 2012

A tristeza de tudo o que não foi mas permanece

Tudo o que poderia ser e subsiste em semente, é triste. Triste como são todas as coisas que ficam por nascer. É uma tristeza como que uma pequena morte. Às vezes morre porque não choveu, e assim pereceu suavemente, sem culpas, com inocência. Às vezes morre violentamente, e foi ceifada na lâmina dura e fria do desgosto. E assim à tristeza se soma a raiva, guardada como pérola, cristalizada no tempo, sem nunca desaparecer, antes se torna inútil. Pior mesmo, é a tristeza do que não foi mas um dia acreditámos que poderia ter sido. É uma tristeza como uma derrota. Há algo de inglório e vergonhoso neste investimento estéril de esperança. Tudo o que é e não foi subsiste sempre. Na sua não-existência, há uma segura e inexorável persistência na nossa vida. Creio que somos bem mais do que as nossas sementes infecundas. Somos afinal tudo o que cresceu e frutificou. Mas bem, quando hoje contemplo esta minha terra, vejo sementes lançadas ao abandono e, a maior tristeza, não está na semente, está sim na minha visão de tudo o que poderia ter sido. E é isso que às vezes dói como ferida que não sara.

Eu sou eu, meus fantasmas, minhas sementes que não nasceram. E quando voltar a viver, quero ser tudo o que cresceu e que ainda há-de morrer, mas já em flor, em fruto, em árvore murcha quando chegar a sua hora.


General no seu labirinto

Pode um homem estar demasiado habituado a si mesmo, cansado de beber de dentro das suas palavras, comer dos seus frutos, de consumir como desenfreado do arquivo dos seus sonhos? Estará o homem, ou uma mulher como eu, demasiado embrenhada nos seus labirínticos motivos, com o seu discurso de mesmice, permitindo condescendentemente os seus erros, a sua libertinagem, os devaneios da sua solidão?

Caminhei tão longas veredas, escalei tão escarpadas montanhas, repetindo a mim mesma que a dor aguça o engenho num produto melhor, inacabado mas bom, apto à grandiosidade, para afinal perceber que apenas conduziu a um estado de embaraço, de enfado, num desfiar de maus humores, de nenhures entediantes e irritantes?

Estarei há demasiado tempo entregue a mim mesma? Poderei ainda esperar do outro paciência para desfiar a corda de egoísmo que me enforca, a crença que, desenterrando as camadas de pó dos dias, dias longos e embirrentos, jaz um ser nu e vulnerável?

Caminhei pensando que me desnudava do supérfluo, do lixo da vaidade, do hábito, da cadência do tédio, quando afinal estou vestida como nunca...


 

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Ver em claro e deixar para trás o que não interessa

Ver claro em nós e ver como os outros nos veêm. Ver esta verdade frente a frente e não haver um naufrágio em culpas e remorsos. Experimentar o desejo, sem acreditar que ceder a ele é o conspurcar da elevação que se persegue. Ser elevado, é não sofrer com o que não podemos mudar: os outros e a natureza.

Ver, porque é este o sentido verdadeiro. Ver de cá dentro e não ter vergonha, nem ambições, nem ansiedades. Ver claro depois de um dia chuva, em que a terra se oferece timidamente ao sol.

Ver sem que a verdade fira tanto, que até cerramos os olhos com a soma de todos os cansaços, com a cegueira de quem não quer ver.

Ver honestamente sem delirar com verdade, sem mentir para evitar o sofrimento, ver que os alicerces são de barro e a casa que suportam é de pedra. Ver que tudo são destroços.

Ver tudo isto e rejubilar com a verdade. Ela é clara e é de pedra, bate mas não mata, antes liberta.

Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É também preciso não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho que se poderia ver se a janela abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

Alberto Caeiro

terça-feira, 4 de setembro de 2012

A Insónia: a dama da noite de reputação questionável

Duas, três da madrugada e não consigo dormir. Antecipo, com o certo gozo das certezas, o toque do sino da igreja. Sei que está tarde e a insónia é o meu amante esta noite. Deitei-me a seu lado, com a promessa de não ficar só. Hoje sou eu, a insónia, o pensamento e a solidão. Contemplo esta profusão de corpos, com o seu cheiro acre a cadáver, porque, na realidade estão mortos. São pesos negros como âncoras no fundo do mar. Estou como barco atracado nesta baía infecta, em que o sono morreu e a minha mente se revolve num enjoo de mim. Tento recordar, mas as boas memórias estão gastas à força de tanto as trazer à superfície. É estéril este momento, é de aridez que saboreio este tempo. A boca está seca, engolir é lamber um cacto no deserto de Atacama. É assim que sei que estou com medo. O medo insinua-se como uma dor, que vem devagarinho, deleitando-se com os pequenos pêlos da minha nuca. A cefaleia que irradia como polvo a pele atrás das orelhas: dói por dentro e à superfície. Ela cresce como rede que se lança ao mar, alcança as têmporas e eu sei que vou deixá-la viver um pouco. A dor lembra-me que estou viva nesta insónia. Levanto-me quando o torpor doloroso me encharca em suor, num calor que sai dos pés como queimadura. Desço as escadas e reparo de relance nas sombras que se desenham nos vidros foscos das portas. Porra, sou criança outra vez e estou com terrores nocturnos. A dor outra vez, agora lancinante, e por isso continuo e chego à cozinha. Ainda às escuras, porque receio que a luz torne a insónia mais real, tacteio um comprimido na gaveta dos tesouros de botica. Sim, vou ceder a este pequeno prazer, lenitivo na fase terminal da minha noite. Sei que o sono que vier não será sono, significará que a insónia se foi prostituir com outro cujo desejo está a morrer. Antes mesmo de me apagar, vejo como filme a última cena, não sei se sonho ou se recordo (não tenho a certeza se é diferente), um último momento em que tive esperança, em que a luz se desmaiava e eu era feliz com certeza de uma noite de sono sem cadáveres nem fantasmas, num abraço de corpo quente.