terça-feira, 16 de setembro de 2014

Hasta siempre!

Continua. Mesmo que a cada passo te afundes mais na lama.
Continua. Não páres.
Mesmo que a dúvida se insinue em cada poro do teu corpo.
Mesmo que o cansaço seja uma corcunda velha que abandonou a bengala.

Resiste. Rebate sempre e não recues. Jamais te imobilizes na tristeza.
Recusa todos os nãos, todos os nuncas, todos os talvez. 

Enfrenta a tua dor. Não sejas mártir, mas jamais te esqueças que és um lutador.
Lutamos para entrar neste mundo e devemos guerrear para continuar a viver.

Rende-te somente para respirares fundo e recuperares fôlego. A rendição aplica-se apenas e sempre às circunstâncias, jamais àquilo que somos.
Muda de estratégia, se quiseres. E continua, mesmo em sangue ou em lágrimas.
Bebe da tua dor e renova-te nela.

Continua. Se continuares, vencerás. Voltará a fé. O sonho. O pensamento limpo.
Continua. Mesmo em dor. A vontade é continuar de mãos vazias.

A vitória é nunca parar.









sábado, 23 de agosto de 2014

A voz sem mestra

Há pouco alguém me dizia que se sentia a ficar muda. Como se o espaços fora dela estivessem cheios de nada. A única coisa que no seu íntimo calava fundo eram os silêncios. Foram pequenas coisas que foi reparando. O frio dos dias era mais intenso e as noites mais longas. O sono foi ficando pesado mas curto e ficaram os olhares fixos e demorados sobre as coisas apagadas: a televisão, as lâmpadas, o fogão. A vontade foi minguando como a lua na sua fase diminuta. A voz mais rouca, algodão nos ouvidos e pálpebras pesadas. A vida se sucedendo sem se contarem as horas. Fiquei triste. Evoquei na minha mente a impressão desta pessoa a cores, o seu retrato alegre ocupou a minha memória e a sua gargalhada alta ecoou nos meus ouvidos. O que foi que nos aconteceu? Onde largámos as mãos e nos escondemos uma da outra, atrás das moitas, a contar as folhas? Ainda te vejo inteira e feliz. Como lembrança viva, nao como amuleto, mas como companheira de viagem... Não percas a voz, nem as coisas dentro dos espaços. Não deixes de acender todas as luzes à tua passagem, de ligar a televisão bem alta e de deixar queimar o jantar. Se o fizeres, emudeceremos ambas. E uma parte de nos morre. Continuemos a cantar juntas. Para sempre.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Qualquer Reino

Em qualquer reino posso-me perder hoje. Ser o que fui. Ou tudo o que quis ser. Num reino onde nada nem ninguém morre. São árvores que crescem até ao infinito e que dão fruto todos os verões. Num reino sem fantasmas, onde posso descansar a minha cabeça, sem jamais olhar para trás. Todas as decisões, passadas e futuras, são abortos inconsequentes. Nestes reinos, apenas se é, não se tem de ser. Aqui não se espera, vive-se. Em qualquer reino posso perder-me hoje. Cantar bem alto. Dançar com os pés descalços. Num reino onde as borboletas nunca são casulo nem lagartas. São bichos que esvoaçam aqui dentro, numa pura alegria. Não se constroem castelos de cartas. Nem se chora por eles, quando inelutavelmente, se desfazem. Não há gargantas secas, nem corações a galope. Aqui não se anseia, encontra-se. Em qualquer destes reinos posso perder-me. Mas não o vou fazer. Hoje vou ser rainha a dormir. Apenas no sono. E, enquanto estiver acordada, vou esperar, ansiar, ter medo e amedrontar. Não se pode reinar e ser real.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Algodão Doce

Hoje, entre nós e as paredes e as coisas, se instalaram nuvens de algodão, que se dobram sobre si mesmas como degraus de uma escada impossível. Algodão como nevoeiro que se pode tatear e cheirar, saborear a sua doçura pungente, como um perfume velho de amêndoas que se cola às narinas e à pele. Sinto os seus pequenos cristais de humidade a colarem a minha voz. Nos meus ouvidos, criaram eco como uma palco de um teatro antigo, numa péssima acústica em que só a minha voz nasalada se propaga. O algodão emudeceu-nos um para outro. O algodão ensurdeceu-nos num queixume miudinho, que às vezes escuto como um lamento na noite, como o último cântico de uma nau que naufraga. Este nevoeiro é um naufrágio. Afunda-se a vontade como uma âncora. O algodão suaviza-nos os contornos, mas turva-nos a água. É difícil enxergar um e o outro. Os dias sucedem-se. Devagarinho, despega-se o algodão da alma. Dissolve-se quando lágrimas de chuva começam a cair. Na pele, rastos de doçura rançosa, como salitre, recorda-nos que ainda não está tudo limpo. A pele traz ainda a humidade opressiva daquele nevoeiro de algodão. Está tudo ainda frágil. Vai-se lambendo a pele lentamente. Um do outro, para os dois, é a cura. Às vezes, como numa feira popular, depois do algodão vêm as pipocas e as voltas loucas nos carrosséis. Mas, para nós, é o tempo das madrugadas de asseio, depois das noites quentes de festa. Os nossos destroços, como o algodão, dissolvem-se como flocos varridos dos cantos pelo vento. E sobrevêm os espaços, e as paredes e as coisas. E nós, náufragos, no meio, tentando reconhecer-nos.

quinta-feira, 31 de julho de 2014

Nevoeiro no meu coração

Vejo umas nuvens suspeitas a transportarem-se no céu. Adensa-se um clima bafiento, como a humidade retida num frasco de coisas estragadas. Hoje não consigo respirar bem, não consigo um dia luminoso dentro de mim. 
Então, escrevo. Escrevo para virar-me para dentro e encontrar a ponta solta do fio condutor deste dia. Desenrolá-lo devagarinho e tecer uma história que faça mais sentido do que estas nuvens. 





terça-feira, 15 de julho de 2014

Uma boa dose de faz de conta

Desejo uma bola de sabão transbordante entre os dedos, com uma força tênsil parecida com o infinito.  Uma pequena maravilha de impossíveis na palma da mão. Estender o braço e tocar o rasto de um avião branco que risca o céu azul. Deve saber a algodão doce, a coisas leves, como espuma que se desfaz na areia. Quero o som das ondas dentro de uma casca de noz. Quero ouvir a campainha... à porta deve estar um bouquet de balões de todas as cores. Alguém os segura e os solta, levemente no ar, e eu fico a vê-los subir, de boca aberta, com um fio de saliva a gotejar do queixo.
Amanhã, quero acordar no cimo de uma montanha com a minha música preferida a tocar. Irei gritar e ouvir o meu eco a desfazer-se contra as encostas e sentir a liberdade como uma coisa que nos preenche por completo. Não sei se será a liberdade ou a única sensação verdadeira: sentir-se vivo.
Quero hoje fechar os olhos com força, abri-los em seguida, mesmo a tempo de ver um girassol a rodar ao sol. Ao longe, de certeza que escuto risos de crianças e corridas loucas de cavalos. Um cão a latir alegre ao fundo. O regresso de alguém amado. A saudade que se encontra no caminho...
Páro. Reparo que resvalei do faz de conta para coisas que contam, que acontecem simplesmente e não damos por isso. Será a realidade afinal o sonho? Quero antes uma dose de faz de conta, mas daquele tipo que acontece mesmo. Páro de novo. Reflito. 

Quero uns óculos mágicos para não perder um só segundo da impossibilidade maravilhosa que é a Vida. 


quarta-feira, 9 de julho de 2014

Um passeio à noite com as estrelas

Pára. Dentro de ti, cala todos os sons. O teu corpo em linha reta, movendo-se contra o vento. A noite fria ecoa no teu peito. As estrelas distantes criam uma estrada de sonhos até onde o teu olhar se move, para o céu e ainda mais além. Longe, um piar de coruja, fantasmagórico, aumenta a solidão do teu pulsar cardíaco. És tu e os elementos nesta hora tardia. É estranha a cidade à noite. Algumas pessoas passeiam os cães. Pára, volta para dentro de ti. Sente o vento a assobiar por entre o cabelo solto. Concentra-te. Uma orla de vazio: não pensas, não desejas, não respiras. Sente a flexão e a extensão das pernas, o rabo assente no selim duro. A pressão, a fricção, o cansaço. A noite imensa. E porém, há muito que não te sentias tão em casa. Atrás de ti, uma presença. O restolhar da roda que se sucede em círculos. Alguém que te segue. Não sabes se esta noite é a mesma que partilhas com ele. A mesma noite faz dois seres estranhos e diferentes. Pára, sente tudo, absorve tudo. Este é o teu momento. Dado ao mundo e às coisas. O teu espaço vazio já não é tão grande. És tu, agora. E o mundo foi um bálsamo. Olhar para dentro já não é um poço fundo. 


sábado, 14 de junho de 2014

Não esquecer de ser flamengo ou outra coisa qualquer

Não te esqueças de ser,
De seres tu mesmo,
Grande, único, imenso.
Ser o mundo cá dentro.
Ter uma alma grande como a nuvem,
Passageira, leve e livre.

Não te esqueças de ser
A vida em luxúria,
desejos insanos e prazeres.
Rir quando se chora,
Saborear as lágrimas de vitória.

Não te esqueças de ser
O corpo que muda,
quando é belo e quando é triste.
Beber com avidez e de
Comer com sofreguidão.

Não te esqueças de ser
Amado, e de amar. Muito.
Ser música, mudar de compasso
Às vezes ligeiro ou descompassado.

Não te esqueças de ser
A vida que se dá sempre
De chegar vazio no fim
E encarar a partida com
Memórias infinitas.

Não te esqueças de Ser.
Não te esqueças...



sexta-feira, 9 de maio de 2014

O lobo das estepes

Olha com atenção, é um lobo das estepes.
Destemido, com tempestades no coração.

Por vezes, ergue-se do alto da sua coragem cega e morde o céu.
Rasga o seu véu azul e
Pedaços de nuvens desataram a cair, como neve gélida e pura, que deliciosamente pousam na pele, e derretem algum tempo depois.

É um lobo casmurro de pêlo áspero e de pele frágil.
Caminha na estepe gelada, secretamente a suspirar o sol.

Ao lobo das estepes não lhe conhecem os segredos. Nem ele os sabe.
Caminha cinzento por entre as árvores. 

Por vezes, olha para o alto, para as estrelas.
E, por entre nebulosas antigas a morrer,
Ele vê a ordem que precede ao caos. As suas cores impossíveis, desenhando-se no breu ancestral.
E fica um pouco triste, um pouco assombrado.
Uma felicidade pequenina instala-se no seu coração de garras. 
Ele vê minúsculos milagres e acredita.
Ainda é possível ser-se feliz. Mesmo nas estepes. Mesmo sendo um lobo.







segunda-feira, 24 de março de 2014

Not all who wander are lost

Porque errar no ermo do mundo
No ermo de nós mesmos
No cimo de uma montanha
Cheio de si, com um pouco de nós
É imensamente humano.

Sou errante e, se me perguntam,
Não estou perdido.
Antes pareço só, vagabundo de mim
Permeio as minhas fronteiras,
tateando a minha sombra.

Porque a incerteza é rainha
De todos os possíveis e
Vencedora de todos os impossíveis.
É errando que sei que escapo
Por vezes, por muito ou
Por pouco tempo
Ao mundo e à certeza das
Coisas iguais, assassinas da Alma.

Estou errante, num barco azul
A vela é de neblina espessa,
Transeunte de mar imenso.

Capitão deste barco de sonhos,
Encontro-me mais além,
Depois do horizonte.

Onde é isso
Não sei, a errância é navegar sem nada saber.





quinta-feira, 6 de março de 2014

Caminhar nos teus sapatos

Meti-me nos teus sapatos, num esforço sobre-humano para afastar o meu individualismo. Despi-me de mim, dos meus sapatos gastos e com remendos, mas fortes sobre a terra que calcam, enraizados como a mais velha das árvores, na sua vontade férrea em sobreviver. Expus os meus pés dentro dos teus sapatos, com dificuldade, porque não conhecem as suas reentrâncias, os sítios especiais cheios de calos da vida e de outros precalços. Meti-me adentro de ti sem medo, porque preciso de sentir como tu sentes, pisar como tu pisas as coisas, como galgas os obstáculos e te desvias das poças de chuva. Preciso de caminhar sobre aquele rasto que percorres todos os dias, com o peso das tormentas que se abatem sobre ti. Preciso de conhecer como lutas contra o vento desviante, como manténs a direção inexorável para o horizonte que persegues.

Preciso de calçar os teus sapatos, para te compreender e te perdoar. Porque estou cheia de mim e das minhas coisas e não alcanço mais nada. Já não caminho com os meus; hesito num plano incerto, náufrago na sua indecisão. Os teus sapatos têm um norte, e quero tatuá-lo na planta dos meus pés, para já mais me perder de ti.

Hoje, caminhamos juntos, eu em ti, tu em mim. E iremos aprender juntos. 

sábado, 1 de março de 2014

Sacudir o pó dos dias

A poeira dos dias desce devagarinho, como uma segunda pele que se cola a nós, húmida e pegajosa, com um suor indesejável que tarda a respirar.
Sacode-se os ombros, para fazer ressurgir o entusiasmo, há muito soterrado sob camadas de horas e minutos de infinitésimos segundos, pequenas viagens para os lugares de sempre... O Aqui e o Agora confundem-se sob o mesmo espetro de tempo, compassado, medido e escrutinado e, afinal, fugaz.
Agita-se num violento meneio de cabeça esta poeira descomunal, esperando ver o brilho divino daquilo que é para sempre novo dentro de nós: as coisas, os lugares, quem se ama num sorriso que é inaugural e ingénuo em nós.
Há que viver os momentos, vivê-los sem margem para contá-los. Vivê-los, apenas sem assistir a eles do lado de fora, como se dentro de uma narração pardacenta, de nós para nós, sem a náusea da rotina e do tédio. 
Vale tanto a pena está viagem...



quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Uma janela para o mundo

Simplesmente: consigo ver as hastes dos juncos sobre a linha da água.
O rio, ao longe, como um espelho de prata, onde a claridade se espalha em infinitos feixes vestidos de luz.
Consigo ver os caules delicados, dobrando-se na ponta em estames femininos, grávidos de suavidade, uma curva que se deleita no horizonte.
Consigo vê-los, através da luz e do rio, porque me ergo do meu catre, como um escravo no vislumbre da liberdade. Ergo-me acima do que me é possível ou moralmente indicado. Ergo-me ligeiramente, inclinando o meu tronco no sabor de uma brisa que me impulsiona timidamente. Ergo-me, porque assim é a minha natureza: como um junco orgulhoso na beira do rio.

E assim contemplo a beleza nua, que se oferece sem vaidades, a quem se levanta para vê-la, a quem não tem medo de largar o catre seguro onde vive e espreitar a janela, uma janela para o mundo. 

Simplesmente, consigo ver.