sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Algodão Doce

Hoje, entre nós e as paredes e as coisas, se instalaram nuvens de algodão, que se dobram sobre si mesmas como degraus de uma escada impossível. Algodão como nevoeiro que se pode tatear e cheirar, saborear a sua doçura pungente, como um perfume velho de amêndoas que se cola às narinas e à pele. Sinto os seus pequenos cristais de humidade a colarem a minha voz. Nos meus ouvidos, criaram eco como uma palco de um teatro antigo, numa péssima acústica em que só a minha voz nasalada se propaga. O algodão emudeceu-nos um para outro. O algodão ensurdeceu-nos num queixume miudinho, que às vezes escuto como um lamento na noite, como o último cântico de uma nau que naufraga. Este nevoeiro é um naufrágio. Afunda-se a vontade como uma âncora. O algodão suaviza-nos os contornos, mas turva-nos a água. É difícil enxergar um e o outro. Os dias sucedem-se. Devagarinho, despega-se o algodão da alma. Dissolve-se quando lágrimas de chuva começam a cair. Na pele, rastos de doçura rançosa, como salitre, recorda-nos que ainda não está tudo limpo. A pele traz ainda a humidade opressiva daquele nevoeiro de algodão. Está tudo ainda frágil. Vai-se lambendo a pele lentamente. Um do outro, para os dois, é a cura. Às vezes, como numa feira popular, depois do algodão vêm as pipocas e as voltas loucas nos carrosséis. Mas, para nós, é o tempo das madrugadas de asseio, depois das noites quentes de festa. Os nossos destroços, como o algodão, dissolvem-se como flocos varridos dos cantos pelo vento. E sobrevêm os espaços, e as paredes e as coisas. E nós, náufragos, no meio, tentando reconhecer-nos.

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