sexta-feira, 26 de julho de 2013

Ser feliz de mãos vazias

Ainda há pouco tudo me faltava. E tinha risos e choros, tempos infinitos, livros arrumados, páginas por decifrar. E tinha dias de sol e de chuva que caía devagarinho, como uma carícia. E tinha árvores que docemente se balançavam ao vento. E tinha um irmão e uma irmã, e um pai e uma mãe, e mãos e pernas e alpendres para descansar ao entardecer, quando o fôlego do dia se me escapava por entre os lábios. E tudo era abundante no meu regaço e, ainda assim, o meu colo permanecia estéril e o meu coração pesava a cada batida. Afinal, ainda tudo me faltava.

Agora, já não tenho tempo porque ele se escapa por entre os dedos entrelaçados, como areia movediça. Já não tenho livros arrumados; estão dispersos no fio do pensamento, em que devoro, voraz, recordações de palavras, para as reproduzir com doçura, para me recordar que também eu estou a viver um romance outrora lido. Agora, já não sei se são dias de sol, ou de chuva, porque todos os dias são de bruma fora da janela, dentro do quarto só há o branco dos lençóis e das paredes caiadas, deste sítio de suspiros. Agora, já não há irmão ou irmã, nem pai nem mãe, há uma cândida existência, omnipresente, instalando-se com parcimónia em todos os recantos, reclamando como conquistador os despojos de uma vida antes vazia, para agora a insuflar com entusiasmo. Afinal, já nada me falta e falta tudo: falta onde antes eram coisas e agora são tesouros. Assim, nada me falta, perdi o que não tinha, para conquistar o que anseio ter.


segunda-feira, 15 de julho de 2013

Bagagens de nada na Partida para lugar nenhum

Posso fazer as malas, uma e outra vez. Fazê-las e desfazê-las com violência, com ecos de tempestade, ou com doçura, lentamente tombando as roupagens dos vícios e com amor despedir-me, dobrando, como pergaminho, as meias, as camisas, os vestidos de sol e de areia. Faço e desfaço estes volumes de adeus, rasgos de passagem por entre as medas do tempo e do espaço, e penso que é breve o movimento e longo esquecimento. Esta deriva de partida, subtrai-me à paz de não sair desta casa, de me quedar imóvel numa vida em suspenso, pelo fio esticado por entre as montanhas. Da minha vida crio compartimentos, estabeleço fronteiras invisíveis, desfaço uma narrativa de viagem. A mala está devidamente arrumada, num movimento artificial de ordem e precisão. Falso, como é falsa a organização que criamos para a nossa vida, a história que contamos a nós mesmo sobre o desenrolar dos acontecimentos, como nos perdemos e ludibriamos na memória que, insidiosamente, vai desfiando corredores inexistentes, saídas de emergência e janelas altas para o mar. A mala está pronta e este ímpeto de perfeito acabamento, de arestas limpas e arejadas, propulsiona a minha mão sobre a aba. Levanto-a e sinto o seu peso, que prende a mão e cansa o braço. Aquele pedaço de arrumação, de coisas inúteis para iludir o corpo e os olhares, um satélite no meu planeta desgovernado, de massa impossível que não levita, detém-me os passos. Paro, com abandono largo a mão e logo aquele volume ordenado se derrama no chão, se misturando com o pó. Os meus planos que se despenham, por entre frágeis tecidos e o retinir de jóias brilhantes. Sento-me e decido: parto como nasci, sem bagagens nem planos, uma tela em branco, uma mala leve como uma breve extensão de mim mesma. Do passado nada carrego, a minha mala é um conjunto de penas leves e brancas do futuro. 
Parto com o futuro aqui dentro, com a leveza do que ainda não aconteceu.


terça-feira, 2 de julho de 2013

Quando o pupilo está pronto nem sempre o mestre aparece

Já estiveste perto de tudo o que era certo, perfeito, justo e mesmo assim a hesitação condenou os teus passos a uma inércia quase insuportável? Já desejaste com todo o teu coração, sentir, conhecer, confiar e mesmo assim a dúvida petrificou o teu gesto, numa perfídia indecisão que penosamente arrasta todos os segundos dos teus dias?

E assim se desenrola um pequeno inferno, como contas de um rosário de ansiedades e pequenos prenúncios de desgraça...
São noites de inúmeros acordares, uma hora e após outra e outra, entrecortadas com sonhos devastados, ansiosos pontos de encontro que não se acham, sombras que se encolhem nas esquinas do pensamento.

Decidir é reviver erros, ter certezas é matar a vontade de querer mais e além e aquém do que se tem agora. Mas a indecisão é buraco negro que suga o universo. Se escolher é viver ou morrer, não escolher é ir-se morrendo. 

Aguardo a minha espada para escolher.